Angela Alonso

Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

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Angela Alonso

A moda de morrer

Além da pandemia, o governo faz sua parte, animado a distribuir pólvora

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A morte não olha carteirinha política, “a sua democracia não distingue”. O morticínio nacional, que tranca a população em casa e suspendeu o Carnaval, ressoa o registrado por Machado de Assis, em 1894. O artigo que a Folha há pouco republicou mantém a causa secreta porque todo mundo a conhecia. Rondavam os vivos não só as epidemias, como a militarização da sociedade. Temiam-se tanto as febres (amarela, de tifo e varíola) quanto os tiros. O país estava em pé de guerra, guerra fratricida.

Aconteciam duas revoltas contra o governo de Floriano Peixoto, acusado de pouco amigo da Constituição. Sua resposta saiu por bocas de canhões estatais e pistolas particulares. Cidadãos organizaram “batalhões patrióticos”, que caçavam adversários pelas ruas a porrete ou baioneta, guardando mais o presidente que a pátria.

Isso faz mais de século, mas “a moda de morrer” a que aludiu Machado voltou à toda. Além da pandemia cancelando serpentina, o governo faz sua parte, animado a distribuir pólvora. Como nos anos Floriano, esforça-se mais em garantir o armamento de seus fiéis que em atacar a crise sanitária. Raul Jungmann o denunciou em carta ao STF: o “armamento da cidadania para ‘a defesa da liberdade’ evoca o terrível flagelo da guerra civil, e do massacre de brasileiros por brasileiros”. Quem alerta não é nenhum petista, mas o ministro da Defesa de Temer.

O próprio governo se militariza, com profusão de fardados em postos-chave —justificada pelas capacidades logísticas tão evidenciadas na marcha da Covid em Manaus. A ocupação militar da administração gera ineficiências e cria animosidades entre políticos e Exército. Tensões que espocam em conflitos miúdos, vocacionados a se agigantar. Foi assim nos meses que precederam os movimentos de resistência a Floriano, com pequenos incidentes violentos em várias partes do país.

Os tempos remetem aos de Machado igualmente quando se olha o lado oposicionista. Os republicanos avessos à militarização do Estado e os monarquistas desgostosos com a República combateram o florianismo em separado. Duas oposições, à esquerda e à direita. Enquanto ficaram de muxoxo uma com a outra, o presidente as venceu, uma de cada vez.

E o fez à força. Decretou estado de sítio, censurou a imprensa, prendeu e desterrou dezenas ao ostracismo, no exterior ou no Amazonas —para onde, como agora, ninguém gostaria de ir. Seus seguidores alucinados descarregavam armas e, na falta de munição, cortavam cabeças de adversários. Os derrotados catarinenses amargariam, além da carnificina, a renomeação de sua capital (antes Desterro) em homenagem ao Marechal de Ferro. O Mito atual também se enfatuaria se seus sequazes rebatizassem a terra de Doria de Bolsonarópolis.

Machado de Assis tratou essa violência política com tintas contidas. Mas outros, como os bolsonaristas de agora, embeberam a pena em “ódio vivificante”. Raul Pompeia, florianista doente, saudou, numa carta pública, como a de Jungmann (“Carta ao Autor das Festas Nacionais”, 1893), o “ódio em nome do Brasil”, “ódio santo que é apenas uma forma militante de amor”.

Jungmann chamou a atenção para esse amor à morte. Liberar armas, como o governo tenta fazer, em nada beneficia o cidadão comum. Interessa ao crime organizado, às milícias civis e aos sectários políticos do presidente. Armar os movidos a “ódio santo” é jogar gasolina no incêndio. Não vai acabar em festa de Carnaval.

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