Angela Alonso

Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

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Angela Alonso
Descrição de chapéu machismo

Cornucópia de acusações na política opera na lógica da dominação masculina

Ataque contra Simone Tebet foi vômito machista e vômito autoritário

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"A senhora está totalmente descontrolada", atalhou, descontrolado, o depoente. Simone Tebet fazia seu trabalho de senadora, Wagner Rosário, o da roda misógino-bolsonarista. Mandou-a voltar ao lugar de mulher, o da emoção, o do privado, fora da arena pública, masculina. Inverteu as posições, subsumindo a autoridade política dela à autoridade de gênero dele.

Não é acaso que nomear um indivíduo como membro da comunidade política é falar em “homem público”. Aplicada ao outro gênero, a expressão fica pejorativa: “mulher pública”. A língua denuncia a dificuldade brasileira em conceber a participação feminina nos negócios públicos para além dos serviços sexuais —mulher pública é a prostituta.

Foi vômito machista e vômito autoritário, de quem se acha insubordinável. Gerou repulsa da parte da sociedade que se crê moderna, evidente em berros (“machista”, “moleque”) na CPI e nas redes.

Renan Calheiros se solidarizou com a colega, via literatura. Equivaleu Rosário a Fabiano. Valente na sujeição violenta de mulher, criança e cachorra, o personagem de "Vidas Secas" seria covarde no mundo público. A comparação marcou a fronteira público/privado em termos de valentia, reprovação prisioneira do léxico machista. Rosário, como Fabiano, seria o falso cabra-macho.

A medição do público por metro privado extrapola o cercadinho da extrema direita “atrasada”. Exemplo da amplitude é outro episódio, do início do mês.

Um furo de reportagem sobre rachadinhas, tema público, virou febre sobre adultério, tema privado. A ex-esposa do presidente teria tido um caso. Quem dormiu com quem é irrelevante para não envolvidos, se negócios do ex-casal foram ilícitos, aí sim, é problema de toda a sociedade.

A luz, contudo, recaiu sobre a privacidade. Houve coro na manifestação paulista pró-impeachment, no dia 12: “Bolsonaro é corno”. Antes, em Pernambuco, o presidente ouviu "fora, corno". O deputado André Janones postou foto com o presidente da Associação dos Cornos Brasileiros e a desambiguação: não era “o corno do presidente”.

Ferveu nas redes a #BolsonaroCorno e uma multidão de memes —“corno manso”, “corno acima de tudo, manso acima de todos”, “poderoso cornão”, com rosto e chifres em cartaz de filme de Coppola. Convocatória contra o ato golpista ganhou a legenda: “7 de setembro, dia nacional do corno.” Esta onda repetiu futrico anterior sobre possível caso da esposa atual do presidente com um então ministro.

A cornucópia de acusações opera na lógica da dominação masculina, ao supor a macheza como requisito para a Presidência e não reconhecer à mulher autonomia para gerir sua vida íntima –que dirá o país.

O episódio circulou como “história da traição”, a formulação do denunciante, transferindo para a vida pública a moralidade privada tradicional. O escárnio rezou pela mesma bíblia de Rosário, pois “descontrolada” e “corno” são deslocamentos da política para fora dela, para a lógica do doméstico e da fidelidade.

A menção literária à macheza ganhou evidência, para além de Calheiros, em resenhas de livro sobre Machado de Assis, encantadas com a “confirmação” da traição de Capitu. Esta leitura cíclica, que condena a mulher, reafirma a tradição machista. O leitor informado sabe que "Dom Casmurro" é um estudo sobre a dominação, contado do ponto de vista do marido-senhor-narrador. O ponto na literatura como na política não é quem trai quem, é quem manda na narrativa. Quem antes mandava e hoje ainda manda são os que têm aquilo roxo.

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