Angela Alonso

Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

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Angela Alonso
Descrição de chapéu Dia da Consciência Negra

Brasil nunca se exibiu tanto como o que é, um país de maioria negra

Na disputa de símbolos, protagonismo negro na abolição compete com família imperial

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Gilberto Gil não carecia da Academia Brasileira de Letras para virar imortal. Auferiu a imortalidade por obra própria. Mas é sinal dos tempos que a casa fundada por um negro, Machado de Assis, mas cheia de brancos, reconheça sua relevância para a cultura nacional.

É pouco e é muito. Com as cotas estatais e empresariais, expandiu-se a presença negra em circuitos de elite. Em anúncios publicitários, campus universitários e espaço público, o Brasil nunca se exibiu tanto como o que é, um país de maioria negra.

Sendo muitos, os negros não seguem todos a mesma cartilha. Apesar dos contínuos rebaixamentos pelo presidente, 19% deles, disse o Datafolha de setembro, não veem Bolsonaro como ameaça à democracia. E muitos compartilham seu menoscabo com o Dia da Consciência Negra.

O porta-voz da política de negacionismo da desigualdade racial é Sérgio Camargo, que, nesta semana, tuitou: "A era da reafricanização e do senzalismo acabou na Palmares. Aceitem e criem a própria fundação vitimista, com recursos do movimento negro, que não trabalha e nada produz. Passar bem!"

O presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo - Pedro Ladeira-6.mai.20/Folhapress

Desde que se aboletou na cadeira que ocupa, Camargo se bate nesta luta simbólica. É verdade que não a inventou. Todo ano a novela histórica reprisa o capítulo "Isabel versus Zumbi" no 20 de novembro.

A homenagem ao líder do Quilombo de Palmares entrou para o calendário escolar no governo Lula, em 2003. Com Dilma, em 2011, virou Dia Nacional. A institucionalização aprofundou rinha incandescente desde 1988, quando a coincidência do centenário da abolição com a nova Constituição sobrepôs os debates sobre o passado escravista e o presente de subordinação social dos negros.

Em vez da quase rainha branca de olhos azuis, que apenas assinou lei de cuja fatura não participou, o movimento negro sagrou Zumbi como seu herói revolucionário. A escolha ensombreceu estrelas do abolicionismo, só recentemente acopladas ao panteão nacional, com Luís Gama levando vantagem sobre José do Patrocínio e André Rebouças na corrida para a iconização.

Na disputa de símbolos, o protagonismo negro na abolição compete com o da família imperial, enaltecida por Camargo, noutro tuíte: "O marxismo negrista, representado pela figura de Zumbi, escraviza e degrada moralmente o negro. Princesa Isabel sancionou a abolição, e só não fez muito mais pelos libertos porque a recém instaurada República impediu."

Marcha da Consciência Negra contra o racismo no Brasil - Danilo Verpa=20.nov.20/Folhapress

Não é bem assim. Em suas regências, Isabel foi dirigida por políticos experientes e nunca deu o rumo do governo, ao passo que o movimento abolicionista, com sua tríade negra Rebouças-Patrocínio-Gama, foi decisivo para acabar com a escravidão.

Visando elevar a princesa a rainha, os monarquistas investiram em sua consagração como "A Redentora", a despeito de Isabel ter apoiado governo que caçava abolicionistas e escravos fugidos. Governo, aliás, do Barão de Cotegipe, negro como Sérgio Camargo.

O mito da princesa abolicionista foi insuficiente para assegurar um Terceiro Reinado. É que a monarquia desabava de podre. Mas ainda sobreviveu ano e meio à abolição, o bastante para se furtar de assegurar direitos aos ex-escravos.

A princesa tinha mais esperanças no reino do outro mundo que naquele que nunca herdou. Esposa e mãe prestimosa, católica convicta, monarquista por estirpe, Isabel é símbolo perfeito para qualquer política conservadora. Não à toa Camargo quer dar seu nome à fundação que preside. E há até processo de beatificação de Isabel em curso. Os monarquistas querem canonizá-la. Literalmente.

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