Antonia Pellegrino e Manoela Miklos

Antonia é escritora e roteirista. Manoela é assistente especial do Programa para a América Latina da Open Society Foundations. Feministas, editam o blog #AgoraÉQueSãoElas.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Antonia Pellegrino e Manoela Miklos

Relações de poder

O feminismo é uma trincheira pela construção de relações mais igualitárias

A deputada federal mais bem votada da história do Brasil, Joice Hasselmann, disse em entrevista recente que ela quer ser a líder do movimento feminino brasileiro. Joice se apresenta como uma mulher forte, feminina e em cima do salto, capaz de comprar brigas com os machões do PSL, como revelaram os "prints" do "zap" do partido. A ex-jornalista diz que nunca foi vítima de machismo e não tem medo de estupro porque faz aula de krav magá. Joice tem um projeto de poder, mas não sabe o que são relações de poder.

A deputada, acusada por Eduardo Bolsonaro de ter "fama de louca" —nossa solidariedade, Joice—, entende que mulheres não estiveram na política até aqui porque não quiseram. Nesta lógica, as mulheres demoraram séculos para ter direito ao voto porque não queriam votar. Ou ganham menos até hoje porque desejam. E não porque existem relações de poder.

Foram as relações de poder que silenciaram as muitas mulheres e meninas que se dizem vítimas de abuso pelo famoso médium João de Deus. Por causa das relações de poder, estas mulheres toparam falar no programa do Bial, sem revelar seus rostos. Não à toa, a única mulher que se mostrou para a câmera é uma estrangeira que não vive no país. As relações de poder no país são atravessadas pela violência, e estas mulheres sabem disso.

O movimento feminista sabe também. E por isso, nos últimos anos, lideramos e protagonizamos diversas campanhas de quebra de silêncio. São inúmeras as hashtags de denúncia de violência. E, graças a este acúmulo, assédio de rua agora é crime, e a legislação sobre estupro foi ampliada e aprofundada. Uma vitória das feministas para toda a sociedade, incluindo aí a Joice, que despreza os feminismos.

Mas, segundo Hasselmann: "o feminismo tem uma pauta reducionista que alcança um tantinho de mulher". Ora, o feminismo é uma trincheira pela construção de relações de poder mais igualitárias entre homens e mulheres. Fruto de uma sociedade patriarcal, o feminismo nasceu revolucionário. Tão difícil quanto imaginar um mundo onde o feminismo seja hegemônico é pensar em alguém que se diga contra uma sociedade com oportunidades iguais para homens e mulheres.

Portanto, o ponto a ser refletido a respeito do que diz a deputada, não é sobre o objetivo da luta feminista ou nossos estigmas históricos, mas sobre a forma como estamos disputando esta luta.

Segundo o filósofo Gilles Deleuze, o que define a direita é pensar o mundo a partir de si —enquanto o que define a esquerda é pensar o mundo a partir do outro.

Quando Hasselmann diz que nunca foi vítima de machismo porque é uma mulher forte, ela está sendo uma mulher de direita. Enxergando o mundo a partir de si. Demonstrando seu total desprezo ao que há de estruturante na violência de gênero —o que aconteceu com as vítimas do médium não foi porque elas são fracas, ou porque ele é um psicopata sexual, mas porque elas são mulheres numa estrutura de poder machista que conserva os pilares da violência de gênero através de gerações (sacou por que a castração química não resolve, Joice?).

No grave contexto em que vivemos, em que discursos sobre "eu queria ficar na rede enquanto meu marido rala pra me dar joias" são cada vez mais hegemônicos, urge ser articulado no campo progressista um discurso para além das identidades, rumo à estrutura, para além de mim, rumo ao outro. Um discurso cidadão. Só assim teremos um projeto capaz de voltar a vencer eleições, capaz de mudar as relações de poder.

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.