Antonio Nucifora

Economista-chefe do Banco Mundial para o Brasil, já trabalhou para a instituição na Europa, na África e no Oriente Médio.

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Antonio Nucifora

Injustiça brasileira

Decisão do STF sobre reajuste foi oportunidade perdida de dar o exemplo em momento em que país precisa de liderança moral

O ministro Celso de Mello (e) discursa, tendo ao lado o procurador-geral da República, Rodrigo Janot (c), durante sessão realizada no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília
Sessão no Supremo Tribunal Federal - Renato Costa/Folhapress

A decisão aprovada pelo STF na semana passada de conceder aumento de 16% a seu próprio salário é extremamente controversa –e uma oportunidade perdida de dar o exemplo em um momento em que o país precisa de uma liderança moral. Muitos dos que votaram a favor o justificaram como uma medida para restaurar o poder de compra do salário dos ministros do STF e, de fato, de todo o judiciário, uma vez que o último aumento ocorreu em 2015.

Na prática, no entanto, esse é um argumento questionável por três motivos principais. Primeiro, porque o Brasil está à beira de uma crise fiscal, o que coloca essa decisão na fronteira da imprudência. Segundo, porque o salário dos servidores públicos federais já são, em média, o dobro do salário de um empregado do setor privado com experiência, qualificação e responsabilidades similares. Além disso, tais diferenças salariais entre os setores público e privado são de longe os mais altos na comparação com qualquer país do mundo para o qual haja dados disponíveis. Terceiro, porque a recente crise econômica reduziu a renda per capita de todos os brasileiros, na média, em 8% desde 2015 –como refletido pelo forte aumento do desemprego e da pobreza– e, portanto, é moralmente controverso solicitar um aumento salarial dos mais bem pagos servidores públicos, que também estão entre os indivíduos mais ricos do país, em um momento em que quase todas as famílias menos privilegiadas estão apertando os cintos. Deixe-me dar mais detalhes.

O governo federal gasta muito mais do que arrecada. A única maneira que o país tem encontrado para continuar pagando salários, aposentadorias e fornecendo serviços públicos –tais como segurança, saúde e educação –é se endividando. O gasto acima da receita é tão grande que nos últimos 5 anos a dívida bruta do Brasil cresceu mais de 25% do PIB, chegando a 77% e ainda continua crescendo. Isto é o mesmo que dizer que todo brasileiro vai precisar trabalhar de graça por 3 meses apenas para pagar a dívida acumulada pelo governo federal nos últimos 5 anos. Esse dinheiro emprestado não tem sido usado para investimento, mas para consumo – mais especificamente tem sido usado para o pagamento de aposentadorias e salários.

Muito já foi dito sobre a generosidade e injustiça do sistema previdenciário brasileiro, em que a maioria dos aposentados recebe mais do que contribuiu – o que significa que eles recebem um subsídio (transferência líquida) do orçamento público – especialmente os servidores públicos civis que entraram antes de 2003. O que é menos conhecido é que a folha salarial do setor público do Brasil é alta se comparada com o padrão internacional, principalmente devido aos altos salários dos servidores públicos, particularmente, em nível federal.

Os dados providenciados pela PNAD não separam os servidores públicos por poder. Porém, pode ser argumentado que os poderes Judiciário, Legislativo e o Ministério Público são os principais responsáveis por estes resultados, pois, segundo o Boletim Estatístico de Pessoal e Informações Organizacionais do MPOG (2016), o custo per capita por servidor anual (em 2016) nestes setores no nível federal é, respectivamente, R$ 236.000, R$ 216.000 e R$ 205.000, enquanto que no Executivo, para os servidores federais civis, é de R$ 130.000. Em contraste é importante lembrar que os trabalhadores formais na iniciativa privada ganham em média o equivalente a R$ 26.000 por ano e os informais R$ 16.000. Esses números ajudam a ilustrar o tamanho do privilégio dos servidores públicos no Brasil. Nesta mesma direção, Afonso (2016) realiza uma análise das declarações de imposto de renda e demonstra que, das 10 atividades com salários mais elevados, 6 estão no setor público, o que normalmente não ocorre em economias emergentes e nem em países da OCDE. Portanto é claro que o pequeno grupo de brasileiros que compõem o setor público são um grupo privilegiado, e dentro disso, os mais privilegiados são os servidores dos poderes Judiciário, Legislativo e do Ministério Público. Os ministros do STF estão no topo do sistema.

De fato, os altos salários dos funcionários do governo federal os colocam no topo da distribuição de renda nacional. O relatório “Um Ajuste Justo” utiliza dados da PNAD 2015 para calcular a posição dos servidores públicos dentro da distribuição de renda nacional, os resultados mostram que 94% dos servidores públicos federais estão entre os 40% mais ricos.

Em um país em que muito se paga em impostos para financiar o gasto público e com um sistema tributário que cobra proporcionalmente mais sobre os mais pobres, os salários pagos para o funcionalismo público representam uma transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos e, talvez, uma forma de perpetuar a desigualdade existente no Brasil.

Além disso, o efeito cascata de um aumento salarial dos ministros do STF será significativo. O impacto direto é estimado em torno de R$ 4,5 bilhões, ou 0,7% do PIB, e muito mais indiretamente via o aumento de pressão por ganhos salariais em todo o serviço público. De fato, não apenas os ministros do STF têm os maiores salários do funcionalismo público, mas esse valor é utilizado como referência para os salários do restante do Judiciário e como teto para servidores públicos de alto nível. Sendo assim, um aumento no topo da pirâmide resultará em outros aumentos no funcionalismo público, exacerbando ainda mais a situação fiscal e agravando a profunda injustiça inerente aos excepcionalmente altos salários do serviço público federal.

É preciso criar formas para que os servidores públicos, incluindo os que pertencem ao Judiciário, sejam remunerados de forma correta para que os serviços públicos sejam prestados por uma equipe qualificada, mas sem que isso os torne um grupo privilegiado na sociedade. Ou o Brasil correrá o risco de ver sua Justiça contribuindo para a injustiça e desigualdade social. Debater este assunto é uma tarefa para os próximos governantes que serão eleitos em breve.

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