Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

A caminho

Quinta-feira, estação República, 11h36. Quase todos os passageiros vestem camisas do Brasil, eu também. No canto do vagão, um casal de gays: pobres, mirrados, feições nordestinas. Um deles, de cabelo oxigenado, aperta uma dessas buzinas de spray. "É Copa, meu povo! Vamo animááá!" -e gargalha. Penso como, vinte anos atrás, seria inimaginável gays assim, tão gays, em público, ainda mais indo pra um jogo de futebol. Fico um pouco emocionado: não sei se por estar a caminho do estádio, pela constatação de que o Brasil mudou ou pela breve comunhão das camisas amarelas.

Estação Pedro II, 11h44. O metrô sai do buraco e a comoção se perde entre dúzias de moradores de rua, numa praça de terra. Craqueiros? Talvez, mas o trem anda, o céu é azul, faz sol, melhor esquecer o crack e pensar nos craques. "Brasil! Brasil! Brasil!", puxa um garoto.

Estação Belém, 11h55. Soldados com fuzis, na plataforma. Os torcedores parecem nem vê-los: "Eeeeeu sou brasileeeiro, com muito orguuuulho, com muito amooor". No vagão, o gay de cabelo oxigenado soa a buzina. Mais adiante, antigas fábricas e casinhas geminadas me lembram Adoniran Barbosa. Prédios novos, grandes e feios me lembram os vereadores que, revoltados com as concessões da prefeitura aos sem-teto, deixaram de votar o Plano Diretor.

12h01: "Atenção, passageiros: os trens não estão prestando serviço na estação Carrão devido à manifestação". Olho pela janela e não vejo a manifestação, mas abro o Twitter e assisto ao vídeo: a repórter da CNN sangrando, o PM jogando spray de pimenta nos olhos do cara algemado. "Eu vou buzinar mesmo!", diz o gay a alguém fora do meu campo de visão, "Eu tenho direito! É Copa do Mundo!". "E leleô, leleô, leleô, leleô, Brasil!", puxa uma turma, do outro lado do vagão.

Penha, 12h07. Um campinho de várzea, um ipê-rosa, florido e o vagão inteiro cantando: "E leleô, leleô, leleô, leleô, Brasil!". Eu canto junto, até que as portas se abrem, um cara dá um salto do seu assento, arranca a buzina das mãos do gay e joga pela janela. "Eu sou polícia, cê me respeita senão eu te prendo, seu FDP! Acabou! Acabou!". Silêncio no vagão. Aos meus olhos, o gay parece ainda mais pobre, mais mirrado, mas ele se levanta. "Quero ver a sua identificação!". "Senta ou eu te prendo por desacato!". "Quero ver sua identificação!". O cara enrola. O gay cresce. Agora é um Madame Satã: "A gente vai descer em Itaquera e vai fazer B.O.! Eu tenho o direito de torcer que nem você! Vamos pra delegacia!".

Itaquera, 12h25. Os dois saem juntos do metrô, perco-os de vista e me junto à multidão. Sinto um nó na garganta: não sei se é por estar a caminho do estádio, se é pelo tanto que o Brasil mudou ou pelo tanto que ainda falta mudar.

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