Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Coisas importantes

Eu tinha prometido à editora entregar o livro na terça, sem falta, antes do jogo do Brasil, mas aqui estou, plena segunda-feira, um olho no laptop e o outro em Irã e Nigéria, que começam a jogar na TV muda, do outro lado da sala. Sei que não se trata do maior clássico do futebol mundial, mas a partida vai me puxando, me puxando, e, quando dou por mim, já migrei completamente da tela do Word pra Arena da Baixada.

Numa situação normal eu me sentiria culpado, mas Copa não é, de forma alguma, uma situação normal. Copa é uma espécie de salvo conduto para a vagabundagem. Os almoços que durariam 40 minutos levam 105 (mais acréscimos), o cara com quem você teria uma reunião fica gripadíssimo (justo na hora de Holanda X Espanha), os garçons passam um mês se escondendo atrás de colunas, de frente para a televisão.

Acho mais do que justo. Há algo mais escasso, neste século tão afeito à produtividade, do que boas desculpas para não fazermos o que precisa ser feito? A gente gasta um tempo enorme escrevendo livros, projetando casas, calculando logaritmos, plantando caquis: cada um concentrado em seu imenso umbigo, crente que de sua pequena tarefa depende o futuro da humanidade. Depois morre e já era.

Li outro dia numa revista que os americanos inventaram um pozinho que, misturado à água, te supre de todos os nutrientes necessários, liberando o tempo antes "gasto" com as refeições para ser "investido" no trabalho. Que século! Melhor era ter nascido pataxó lá no CT da Alemanha, no século 18.

O jogo se arrasta. Torço ora pra um time, ora pro outro, até que, 90 minutos mais tarde, o juiz joga a pá de cal naquele zero a zero. A culpa bate à porta: segundona, eu deveria estar revisando vírgulas e trocando uns "contudo" por uns "no entanto" no meu livro e contudo, estou aqui vendo um jogo de futebol. Curiosamente, no entanto, não fico culpado. Fico eufórico: sou tomado por uma epifania. Ouço uma voz sussurrando em meu ouvido. Será Deus? Não, é Nelson Rodrigues. O que ele me diz? Que o que realmente importa nessa vida é deixar de cumprir uma tarefa em plena segunda-feira para ver Irã e Nigéria empatarem em zero a zero. Que não há nenhum poema, nenhuma tragédia grega, nenhuma obra de arte com A maiúsculo que traga outra mensagem senão esta: só os zero a zero são sinceros -o resto é ilusão e vaidade.

Logo mais tem Brasil e México. Legal. Talvez o Brasil seja campeão. Lindo. Mas a beleza da Copa não é ganhar, nem ver a goleada da Holanda ou da Alemanha -isso ainda é estar preso às amarras do século. A beleza da Copa é gastar duas horas com um desolador Irã e Nigéria quando havia coisas muito mais (des)importantes a (não) fazer.

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