Já mencionei em outra coluna: nos 20 anos em que, como escritor, participo de feiras literárias ou bate-papos com o público, raríssimas vezes não me perguntaram como fica o humor diante "da patrulha" do politicamente correto. Nem uma única vez, contudo, me perguntaram o que eu achava de piadas racistas, machistas, homofóbicas ou preconceituosas, em geral.
Não é que eu discorde da existência de "uma patrulha", nem discordo que, em meio a avanços importantes promovidos pelo PC, haja alguns exageros, anseios puritanos ou totalitários. Mas é sintomático e revelador que, se tomássemos como lente apenas os eventos literários, sairíamos com a impressão de que o grande oprimido no Brasil é o escritor branco, heterossexual, no topo da pirâmide social, amordaçado pelas minorias. A realidade, óbvio, é bem diferente.
Nesta semana, enquanto o Exército se espalhava pelo Rio de Janeiro, um vídeo feito por e para negros viralizou na internet: "Intervenção do Rio: dicas para sobreviver a uma abordagem indevida". Veja: "dicas para SOBREVIVER". Semana passada um garoto foi agredido a coronhadas no banheiro do shopping Pátio Higienópolis, aparentemente, por ser gay. Nem precisamos falar do assédio sobre as mulheres em locais de trabalho, violência doméstica, estupros.
Se o politicamente correto contribui ou não na luta pelos direitos das minorias é sem dúvida uma indagação pertinente. Coibir o uso de palavras como "negão", "crioulinho", "viado", "favelado" ou "vagabunda" é um passo na diminuição dos preconceitos? (Acho que sim). Ou o Photoshop verbal apenas aumenta as tensões sob o tapume da hipocrisia? (Pode ser, também). São questões complexas e que precisam ser discutidas profundamente, por todas as partes envolvidas.
Na última segunda, a Folha deu um passo atrás nesta discussão ao realizar o debate A Guerra das Palavras: Os limites do politicamente correto. O primeiro dos três homens brancos, heterossexuais e do topo da pirâmide social a ser chamado ao palco, o que abriu a conversa e o que deu a última palavra sobre o assunto foi o jornalista William Waack.
É razoável discordar da extrapolação do conceito de lugar de fala, que só acha legítimo negros falarem sobre negros, gays sobre gays, índios sobre índios. Maior extrapolação, porém, parece-me acreditar que gênero, cor da pele, classe social ou orientação sexual não têm qualquer influência sobre a nossa visão de mundo e que três representantes do extrato social mais privilegiado dão conta de resolver um imbróglio que gira, entre outras coisas, em torno do privilégio. Considerando-se ainda que um desses homens acaba de sair das manchetes por ter afirmado, diante de buzinadas irritantes, que aquilo era "coisa de preto", fica a impressão de que não se buscava um debate, mas firmar uma posição.
Uma das críticas que se faz ao politicamente correto é sua ênfase numa suposta "vitimização". Pois não há "vitimização" mais difícil de engolir do que acreditar que na "guerra das palavras" do Brasil atual a voz que corre mais perigo de ser calada e que deve ser defendida num evento do jornal é a do homem branco, heterossexual, do topo da pirâmide.
Dois dias depois da mesa sobre "a patrulha" do PC, a Folha trouxe na primeira página a foto de outra patrulha, esta do Exército —um fuzil em primeiro plano —, revistando crianças numa favela carioca. Todas as crianças eram negras.
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