Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata
Descrição de chapéu

Marielle, Carmen Miranda, 9mm

O turbante de frutas da Carmen Miranda foi arrancado e o que se escondia embaixo não era nada bonito

Ilustração mostra sangue escorrendo para bueiro
Adams de Carvalho/Folhapress

Eu evito usar esta coluna como válvula para as toneladas de indignação que, como todo brasileiro, trago comigo. Meu ofício é a crônica. Meu ramo é a instalação de sorrisos no canto da boca, não a liberação de gritos engasgados na garganta. Não que eu ache o sorriso superior ao grito, longe disso, é que miro nos lábios há duas décadas: quando faço crônica, modéstia à parte, é com algum conhecimento de causa. Quando grito, não me diferencio de qualquer textão de Facebook.

Evito, mas nem sempre consigo. Hoje é um destes dias em que perco a batalha, em que a busca pela delicadeza é pisoteada pelo mamute da revolta. Perdão, Rubem Braga. Lamento, Paulo Mendes Campos. Licença, Drummond, Vinicius, Sabino e todos os mestres que me ensinaram a importância do assovio, mesmo (ou principalmente) no meio do bombardeio. Hoje não tem assovio. Hoje é vão-livre do Masp.

Duas semanas antes de ser morta num crime premeditado, junto ao motorista Anderson Gomes, Marielle Franco assumiu a relatoria da comissão da Câmara Municipal do Rio para acompanhar a intervenção federal na cidade. Dez dias antes de Marielle assumir a comissão, o comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, pediu "garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade". A Comissão da Verdade investigou assassinatos, torturas e outros abusos durante a ditadura militar brasileira, aquele período de exceção em que o Estado matou e torturou ricos, não só os pobres de sempre. (Sobre os abusos contra os pobres de sempre, um dia antes de morrer, Marielle denunciou o 41° Batalhão da Polícia Militar de Acari, o mais letal do Rio de Janeiro). Ainda não se sabe quem assassinou a vereadora e o motorista, mas se sabe quem ganha com isso: aqueles que, em nome da lei, agem fora da lei —e não querem comissões metendo o nariz.

Nestes dias me vi oscilando entre o espanto —o que está acontecendo com o Brasil?!— e um espanto maior ainda: não está acontecendo nada. Este é o Brasil. Um país esquizofrênico que mata quase 60 mil pessoas por ano e se crê pacífico. Um país onde 71 de cada 100 assassinados são negros (Atlas da Violência de 2017, IPEA) e que ainda se diz uma democracia racial. 

Na primeira parte do livro "A Vítima Tem Sempre Razão?", Francisco Bosco mostra brilhantemente como a derrocada do lulismo marca o fim de certa "cultura popular brasileira", religião nacional que mistura o "coqueiro que dá coco", o rei Pelé, o Cristo Redentor de "braços abertos sobre a Guanabara" e nos fez acreditar, durante todo o século 20, que éramos uma terra abençoada por Deus e bonita por natureza. Mas que beleza. Algo se rompeu a partir das manifestações de 2013. Os tapumes do otimismo (ou do delírio?), já bambos pela burrice da esquerda, foram finalmente derrubados pelos "black blocs" da direita. O turbante de frutas da Carmen Miranda foi arrancado e o que se escondia ali embaixo não era nada bonito.

Talvez haja algo de positivo na desgraça atual. Talvez nos faça abrir os olhos e enxergar que o retrato do Rio de Janeiro não é o Pão de Açúcar, é o valão de Acari onde o 41° Batalhão da Polícia Militar desova seus cadáveres. Talvez nos faça aguçar os ouvidos e perceber que esse telecoteco que escutamos ao longe não vem dos tamborins, mas dos AR-15, dos AK-47 e das pistolas 9mm

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