Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata
Descrição de chapéu Copa do Mundo

Copa: desanimamos de desanimar

Vale a pena apressar a morte para ver Cristiano Ronaldo marcar três na Espanha

No primeiro colegial minha amiga Manuela tinha uma agenda com uma citação em cada página. Eram 365 “pílulas de sabedoria” para iluminar as suas manhãs. Durante uma aula de química, a Manuela me enviou um bilhetinho dizendo que tinha achado uma frase do meu pai, Mario Prata. Quando a professora se virou para a tabela periódica, dando as costas para a classe e explicando alguma coisa sobre o número atômico do tungstênio ou o peso do xenônio, a agenda passou de mão em mão por umas cinco carteiras e chegou até mim. As aspas não eram do meu pai, mas de um outro escritor, apropriadamente chamado “Mario Pirata”. Nem lembro o que dizia, mas lembro da citação ao lado, atribuída a Leonardo da Vinci, mais ou menos assim: “Quem aspira pela chegada da próxima primavera é um tolo, pois não percebe que aspira pela aproximação da própria morte”. 

Adams Carvalho/Folhapress

Não tenho ideia se Leonardo da Vinci algum dia escreveu isso —e o Google também não, “Primavera + da Vinci” me levou a um evento culinário anual de chefs ítalo-americanos em Delaware, EUA. A frase, porém, ficou guardada em algum escaninho da minha cabeça, junto com a Manuela, o tal “Mario Pirata”, o tungstênio e o xenônio (número atômico 74 e peso 131,3 u, respectivamente, para os que não se aguentavam de curiosidade). Só saiu desse rincão empoeirado nos últimos meses, quando me dei conta de que a Copa de 2014 parecia ter acontecido no ano passado e este ano já teríamos Copa de novo. Que bom que quatro anos passam tão depressa.

Sabia nada, esse Leonardo, mas não o culpo, pois no século 15 não existia futebol e uma coisa é desejar que a vida ande rápido para ver o desabrochar das tulipas e ouvir o gorjear dos colibris, outra coisa é comemorar a aproximação da morte para assistir ao Cristiano Ronaldo marcar três contra a Espanha, o México ganhar da Alemanha, o Philippe Coutinho dar de bico nos acréscimos e nos catapultar do pânico da desclassificação para o vislumbre da taça.

Estou feliz da vida por estes dias e não estou sozinho. Semanas atrás o Datafolha constatou o desânimo nacional em relação à Copa, mas, no domingo passado, primeiro jogo do Brasil, as camisas amarelas começaram a desabrochar pelas ruas, os cornetões gorjeavam como se não houvesse amanhã. E houve amanhã. E depois de amanhã. E houve jogos em cada um desses dias. E pessoas aglomeradas em bares, restaurantes, ao redor de tevezinhas em pontos de táxi comemoravam gol do Senegal, esmurravam a tampa da mesa por um erro da Islândia, debatiam acaloradamente os impactos esportivos e as implicações filosóficas da introdução do vídeo na arbitragem.

Talvez os brasileiros estejam tão desanimados que não tiveram ânimo nem para desanimar, de modo que acabamos animadíssimos. A frase parece não fazer sentido, mas faz. O Brasil parece não fazer sentido —e não faz. Em 2013 a esquerda foi pra rua pedir transporte de graça e acabou colocando a direita no poder. A direita subiu prometendo liberalismo e entregou subsídio pra caminhoneiro. De consistente, entre nós, só a qualidade dos memes. “Se o Brasil vencer essa Copa o Neymar vai beber até ficar de pé”. Eu vou rolar no chão que nem o Tite. E se perder, também, paciência, daqui a quatro anos —sensação térmica de seis meses— começa tudo de novo. No Qatar. Com a seleção do da Vinci entre nós, espero. Fuoooommmmm! (Isso foi um cornetão).

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