Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Que que a gente faz?

Não há outra saída a não ser fazer essa joça dar certo

Uma amiga me liga, arfante. Acabou de ser assaltada no táxi. Arma na cabeça, coisa e tal. Quando se acalma um pouco vem um estranho sentimento de gratidão, afinal podia ter sido pior, está viva, não se feriu, que sorte a filha de 11 meses não estar junto. Depois faz-se em silêncio que é pura desolação. "Que que a gente faz?", me pergunta.

Ilustração
Adams Carvalho/Folhapress

Ela não se refere ao assalto, a como diminuir os índices de violência na cidade de São Paulo. A pergunta é mais ampla, a mesma que nos fazemos há alguns anos quando cai um prédio, uma vereadora é assassinada, um museu pega fogo, uma bala perdida mata uma criança, uma policial de 27 anos, de folga, é assassinada pelo PCC. 

Meus filhos têm cinco e três anos. A vida deles coincide com a degringolada nacional. (A mais velha nasceu em julho de 2013. O parto ia ser num hospital na Paulista, mas no dia em que rompeu a bolsa havia uma manifestação em frente ao Masp e a médica sugeriu irmos para outra maternidade —a médica, aliás, estava na manifestação).

Tal coincidência me traz uns sentimentos meio contraditórios: estes últimos cinco anos foram dos mais tristes da história do país e dos mais felizes da minha vida. Tiro os olhos do jornal cheio de desgraças e aqui do lado, na sala, vejo uma mini-Batman com tiara luminosa de chifrinhos vermelhos puxando por uma corda um triciclo com um moleque de cueca e luvas do Homem-Aranha. (Há poucos antídotos mais potentes contra o banzo atual do que uma mini-Batman com tiara luminosa de chifrinhos vermelhos puxando um triciclo com um moleque de cueca e luvas do Homem-Aranha). Um lado meu suspira, aliviado. Outro lado se angustia: "Que que a gente faz?". 

No começo do ano, passei com a minha filha pelo estádio do Pacaembu, onde uma enorme fila de torcedores sem camisa aguardava a abertura das bilheterias. "Eles são índios, papai?". Meu radar politicamente correto imediatamente ligou o alerta laranja: "Não, eles não são índios, eles são pessoas da cidade como eu e você". "Mas eles são marrons e não usam camisa. Eles são índios". Então abaixei um pouco a guarda e constatei que de fato nós éramos brancos e eles eram pretos e pardos e provavelmente havia naquela fila mais DNA indígena do que dentro do nosso carro. Senti um gosto amargo: minha filha estava tendo uma das primeiras aulas práticas de segregação racial e social. 

Se eu quisesse mandar um sincerão, diria "Veja, a base da população é composta por pretos e pardos e a ponta por brancos, porque os brancos vieram pra cá e escravizaram os índios e trouxeram milhões de escravos negros e mesmo depois de quase 150 anos da abolição nós temos conseguido, com rigor e aplicação, manter inalterada a pirâmide". 

Sem nenhum conforto para dar à minha amiga e numa atroz falta de inspiração, respondo à sua pergunta com a mesma pergunta: "Que que a gente faz?". "Não sei", ela diz e então conta, melancólica, que anteontem a filha deu seus primeiros passos. Três.

Era pra ser a epítome do pessimismo, era pra emburacarmos de vez e nos perguntarmos que país deixaríamos para os nossos filhos, mas a notícia daqueles passos solapa meu derrotismo, é quase como um chamado genético, uma ordem inscrita há milênios nas profundezas do meu DNA: se é aqui que viverão a mini-Batman, o Homem-Aranha de cuecas e a neocaminhante, não há outra saída a não ser fazermos essa joça dar certo. 

Concordo que a premissa é meio troncha, amigo, mas estamos tão desiludidos que qualquer farrapo serve como bandeira, vai?

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