Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Cérebro reptiliano

Imagino se um dia, no futuro, será possível frequentarmos as mentes de outros seres vivos

Ilustração
Adams Carvalho

Vejo o lagarto parado no meio do gramado e o lagarto me vê. Acho-o bonito: preto, branco e amarelo, um minijacaré, um minidinossauro se aquecendo ao sol. E ele: o que achará de mim? Terá medo? Curiosidade? Raiva? “Saco, terei que correr de novo pro meio das Marias-Sem-Vergonha...”? Imagino se um dia, no futuro, será possível frequentarmos as mentes de outros seres vivos.

(Não entendo picas de neurologia, mas os neurologistas de hoje tampouco sabem patavinas do que será a neurologia em 100, 200 anos, de modo que me sinto plenamente autorizado a dar sequência a estas divagações pseudocientíficas).

Digamos que daqui a uns 100, 200 anos, criassem um lagarto num laboratório. Que monitorassem toda sua atividade neuronal desde o ovo. Um computador armazenaria cada sinapse da vida do lagarto. Teríamos um HD externo de sua mente.

Há camadas profundas do nosso cérebro que se assemelham ao cérebro de um lagarto. Isso torna possível, portanto, segundo fontes seguras que acabo de inventar, ir a um laboratório que “desligaria” em seu cérebro, temporariamente, tudo o que não é lagarto. E os cientistas “rodariam” no seu fac-símile de cérebro lagarto as estruturas de “pensamento” daquele lagarto específico. E te mostrariam, em realidade virtual, sua própria imagem chegando, no gramado.

Então você experimentaria o que o lagarto experimentou ao te ver chegar. Da mesma forma, poderíamos enxergar o mundo pelos olhos de uma galinha. De uma baleia azul. “Sentir” uma pitanga a 50 metros pelo sonar de um morcego.

Bem, se for possível vivenciar a experiência de outro espécime, por que não habitarmos, por alguns momentos, a consciência de outro ser humano? Caso o download cerebral fosse viável, quem sabe poderíamos, digamos, resgatar do cérebro do Pelé cada gol de sua carreira e reviver as experiências?

Não, talvez as experiências não fiquem gravadas como ranhuras num disco de vinil. Mais provável que sejam narrativas vivas que são recontadas de nós para nós mesmos o tempo inteiro, mudando a cada recontagem, contaminadas pelas experiências posteriores.

Mas digamos, sei lá, que a nossa neurologia seja tão avançada daqui a 100, 200 anos que os cientistas consigam ir apagando as memórias pelas datas, de modo a reconfigurar o cérebro de alguém como era aos quarenta anos, aos vinte e cinco, no dia três de agosto do ano de seu quinto aniversário. E assim cheguem às memórias fresquinhas. Mais: ao momento antes da memória, à experiência.

Pra que videogame, com uma tecnologia dessas? Imagino um mercado pornô. “Vê aí Kennedy com Marilyn, por favor?”. “Do ponto de vista dele ou dela?”. Imagino um mercado de terror. Cérebros de serial killers escaneados e vendidos no mercado negro: a sensação de cometer os crimes mais atrozes. Para mediação de conflitos, as partes envolvidas veriam a si próprias, via realidade virtual, através das consciências de seus oponentes. Jamais nos perguntaríamos, “afinal, por que chora este bebê?”.

Talvez se torne possível contrabandear apenas partes destes softwares, por alguns momentos. “Amigo, tô indo jantar com uma garota pela primeira vez. Configura aí pra mim a segurança do Muhammad Ali?”. E se as pessoas começarem a baixar mentes inteiras e se trocar por outros? Milhões de Joões se tornando Marks Zuckerbergs. Josés virando Einsteins. Antonios adotando Cabos Daciolos?

O lagarto sai correndo e some no meio das Marias-Sem-Vergonha. Estava com medo —bem, pelo menos foi o que sugeriu esta limitada percepção de primata.

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