Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Por uma exclusão inclusiva

Seria o objetivo do vencedores disseminar a cizânia entre os perdedores?

No início da semana apoiadores de Jair Bolsonaro passaram a circular, via WhatsApp, uma mensagem pedindo boicote a 700 artistas, jornalistas, celebridades e intelectuais que se opuseram à candidatura do capitão. A situação é grave e não posso me calar diante do que vejo não só como uma injustiça, mas como um crime: meu nome está nesta lista, enquanto o de opositores que são muito mais artistas, mais jornalistas, mais celebridades e mais intelectuais do que eu, ficaram de fora.

Segundo matéria do "Congresso em Foco", os 700 nomes foram selecionados entre as 190 mil assinaturas do manifesto "Democracia sim", feito um pouco antes da eleição. E o que 189.300 brasileiros se perguntam desde que começaram a circular os zaps pedindo boicote, é: por que não estou na lista? Qual o critério da seleção? Quem escolheu os 700? Baseado em quê? O clima é de perplexidade e confusão.

Ilustração de Adams para Antônio Prata de 4.nov.2018
Adams Carvalho

Há quem afirme que não existe nenhum critério na lista e que ela foi organizada da mesma forma que aquele café da manhã do presidente eleito, cuja foto circula nas redes: pão na mesa, sem prato, caindo em cima do celular, faca enfiada no queijo minas, uma lata de Leite Moça com uma colherinha lambuzada dentro. Ou que a lista foi improvisada às pressas, como o Morey Boogie usado para sustentar os microfones diante do presidente eleito, quinta-feira (1º), na entrevista coletiva --ou melhor, na entrevista "restritiva", uma vez que os jornais impressos foram proibidos de entrar. ​

Há, porém, quem veja racionalidade na lista e enxergue nela uma manobra tática de "guerra híbrida", como as que foram usadas durante a campanha. O objetivo dos vencedores seria disseminar a cizânia entre os perdedores. Cada vez que um dos 189.300 signatários do "Democracia sim" abre a mensagem de WhatsApp, procura seu nome na lista, não acha e se pergunta, cheio de ressentimento, "por que ele e não eu?", surge uma trinca nos pilares da oposição.

Já na terça-feira (30), no lançamento de um livro, senti os olhares enviesados, os comentários invejosos. Um escritor mais velho, afogando as mágoas no vinho barato, não conseguiu segurar seu rancor: "Eu não só assinei o manifesto, eu participei da organização! Eu tive livro proibido pela ditadura! Quem esses caras acham que são pra não me boicotar assim?!"

Tive problemas até no trabalho. O diretor da série que estou escrevendo na Globo, o grande Luiz Henrique Rios, que tem em seu currículo novelas das seis, das sete, das oito, além de séries, minisséries e o escambau, ficou fora da lista. Eu, em meu primeiro trabalho como autor, lá estou. É uma inversão de hierarquia. Como se, digamos, um capitão ficasse acima de um general. Imagina só, que loucura? Os coautores da série, Chico Mattoso, Thiago Dottori e Bruna Paixão também foram inexplicavelmente excluídos do clube dos 700. O ar na sala de roteiristas está pesadíssimo. Talvez não haja clima para uma segunda temporada.

Nem tudo, no entanto, é motivo para desesperança. O pequeno texto que acompanha a lista diz: "Artistas que se manifestaram contra a vontade do povo, pois mamam do dinheiro público! Se faltou algum, acrescente o nome e passe adiante." Fica aí a chance, portanto, de todos aqueles que se sentiram boicotados do convite ao boicote incluírem-se na lista da exclusão. Façam-no e passem a lista adiante: o Brasil talvez não tenha jeito, mas podemos ao menos tentar salvar as nossas biografias.

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