Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Saibro para tênis de gigantes

Que pudor nos impede de visitar a casa em que nascemos?

Sinto saudade de lugares como sinto saudade de pessoas. Muitas vezes retorno à casa da infância e abro a porta pesada, de madeira escura —noto agora que precisei erguer a mão para alcançar a maçaneta, o filme segue sendo projetado como foi filmado há mais de três décadas, a câmera a menos de um metro do chão.

Cruzo a sala: o tapete de sisal, o sofá bege, as poltronas verdes, a mesa de jantar, as cadeiras com assento de palha. Vou até o lavabo: a pia de cerâmica amarela, bojuda, contrastando com os azulejos azul claros, a janela basculante mais alta que a torre da Rapunzel. Às vezes subo pros quartos, às vezes sigo pro quintal de lajotas vermelhas, quebradas, me sento entre os Playmobils e os Comandos em Ação, ao lado da bacia musguenta das tartarugas. Conforta-me conferir que tudo permanece igual, tombado pelo meu Iphan mnemônico.

Ilustração
Ilustração - Adams Carvalho/Folhapress

A casa ainda existe: se sinto saudades dela, por que não vou visita-la? Que pudor nos impede de visitar a casa em que nascemos, a escola em que nos formamos, a república da faculdade, como visitamos velhos amigos? Alguém pode dizer que os lugares mudam. Levamos os móveis, os quadros, os novos moradores reformam o lavabo. Bom, os amigos também mudam.

Com alguns, aliás, seguimos nos frustrando a cada encontro por não enxergar mais neles o tapete ou as lajotas que tanto nos encantavam décadas atrás. Até os mortos nós frequentamos, uma vez por ano, com flores na lápide e murmúrios que, sabemos, não serão ouvidos. 

Uma construção importante no meu Google Maps sentimental ficava na ladeira estreita que sai da frente da Faap e sobe até a rua Rio de Janeiro. Bem no final, à direita, funcionava o Auê - Núcleo de Ensino Musical, escola onde estudei bateria, na adolescência. Semana após semana, no segundo andar de uma edícula, no fundo do sobrado, o grande baterista Guilherme Kastrup se esforçava para suavizar meus rufos, harmonizar meus paradiddles, evitar que minhas tonitruantes viradas tropeçassem no ar e caíssem de cara no contratempo.

Não evoluí muito nas baquetas, mas conheci, nas aulas de musicalização do Auê, os amigos que me acompanham até hoje. Mudei para a escola deles. Fizemos juntos uma revista na faculdade. Com eles escrevi meu primeiro livro. 

Nunca voltei à edícula, mas, morador de Higienópolis, vez por outra passava em frente ao sobrado. Gostava de ver que, embora o Auê tivesse fechado, a casa ainda estava ali. Estava: anteontem subi a rua a pé e tomei um desses sustos para os quais, como paulistano, já deveria estar vacinado: toda a fileira de sobrados geminados havia sido posta abaixo. Nem entulho mais havia, apenas um enorme retângulo de terra alaranjada, uma quadra de saibro para tênis de gigantes. Por alguma razão, porém —um capricho do santo padroeiro dos cronistas?— a edícula permanecia intacta, com sua escada em caracol subindo até uma convidativa porta aberta.

Cruzei 20 metros de terra, me certifiquei de que a escada estava fixa na edícula, que a edícula estava firme no chão, pisei no primeiro degrau e “Ei, ei, ei, pode subir aí não!”, disse o peão que vinha correndo, segurando na cabeça o capacete sem alça. Pensei em explicar —mas explicar o quê? Estudei bateria aí há 24 anos e, por causa disso, fiz meus melhores amigos ali, onde está o vergalhão amassado? Sou o que sou em parte por causa daqueles 15 metros cúbicos no final dessa escada caracol? 

Saindo, perguntei, metade por curiosidade mórbida, metade por me sentir na obrigação de falar qualquer coisa: “Que que vão construir aqui?”. “Sei não, chefe, a gente só foi chamado pra derrubar”.

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