Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Civilização

Uma história para ser lida e carregada na carteira, no bolso, no sutiã

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Ilustração
Publicada neste domingo, 27 de janeiro de 2019 - Adams Carvalho/Folhapress
 

A matéria saiu no New York Times na quinta (17), foi publicada na Folha de domingo (20) e deveria cair no Enem e na Fuvest, sempre; deveria ser bibliografia obrigatória do ensino fundamental à pós-graduação, deveria ser colada aos postes, lançada de aviões, viralizada nas redes sociais, impressa em santinhos, guardada na carteira, no bolso ou no sutiã e lida toda vez que a desilusão, o desespero, a melancolia ou mesmo o tédio batesse na porta, batesse na aorta: "Para salvar Stradivarius, uma cidade inteira fica em silêncio"

Antonio Stradivari viveu entre 1644 e 1737 em Cremona, região da Lombardia, norte da Itália, cidadezinha que hoje conta com 72.267 habitantes. Durante algumas décadas dos séculos 17 e 18, Stradivari produziu instrumentos de corda cujos sons quase quatro séculos de conhecimento acumulado não foram capazes de igualar.

Por muito tempo permaneceu um mistério o que fazia aqueles instrumentos tão diferentes dos demais, fabricados antes ou depois. Estudos recentes, porém, mostraram que, para além da artesania magistral do luthier, um tratamento químico dado à madeira, à época da fabricação, interfere na qualidade do som. O tempo de uso também entra na equação: a secura da madeira e a distância entre as fibras, causada pela oxidação, são uma das razões pelas quais, segundo o dr. Hwan-Ching Tai, autor de um estudo de 2016, "esses velhos violinos vibram mais livremente, o que os permite expressar uma gama mais ampla de emoções".

Se é verdade que os Stradivarius, como muitos vinhos, melhoraram com o tempo, é inexorável que, em algum momento, avinagrem. Pois este momento se aproxima: depois de quase quatrocentos anos espalhando a melhor música que já foi ouvida, os violinos, violoncelos e violas de Cremona estão atingindo seu limite. Logo estarão frágeis demais para serem tocados e serão, segundo Fausto Cacciatori, curador do Museu do Violino de Cremona, "colocados para dormir".

Antecipando-se ao sono derradeiro, os moradores de Cremona criaram o Projeto Stradivarius. "Por cinco semanas (...), quatro músicos, tocando dois violinos, uma viola e um violoncelo, farão centenas de escalas e arpeggios, usando técnicas diferentes com arcos, ou dedilhando as cordas", sob "trinta e dois microfones de alta sensibilidade". Três engenheiros de som, trancados num quartinho à prova de qualquer ruído, no auditório do museu, gravarão cada uma das centenas de milhares de variações sonoras, de modo que, no futuro, será possível compor músicas com o som dos Stradivarius.

O projeto já estava quase saindo do papel em 2017 quando os idealizadores perceberam que o barulho em torno do museu impossibilitaria as gravações. O prefeito de Cremona, então, permitiu que as ruas da região fossem fechadas até que a última nota fosse imortalizada. "Em 7 de janeiro, a polícia bloqueou o trânsito. A ventilação e os elevadores do museu foram desligados. Todas as lâmpadas da sala de concerto foram removidas, para eliminar um ligeiro zumbido", a cidade calou-se e os Stradivarius começaram a cantar.

Até meados de fevereiro, os 72.267 moradores da cidadezinha italiana deixarão de buzinar suas lambretas, "nonas" evitarão gritar às janelas e amigos cochicharão pelas mesas dos cafés para que daqui a quatrocentos anos um garoto em Cremona, Mumbai ou Reykjavik possa compor uma música com as notas únicas e inimitáveis saídas de instrumentos feitos à mão por um homem que morreu quase um milênio antes de esse garoto nascer. Acho que é disso que estamos falando quando falamos em civilização.

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