Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Antonio Prata

Ao Deus (não) dará

Sem nenhum objetivo, aconteceu de eu ser gente

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Ilustração
Adams Carvalho/Folhapress

Não acredito em Deus. Digo isso sem intenção de ofender ou convencer viv’alma —para os que n’alma creem. Eu não creio: olho pra cima, pra baixo, pros lados, pra dentro, 
principalmente, e não encontro deus algum. (O problema provavelmente é em mim, não Nele. Não discuto). 

Há dias em que invejo os que têm fé, pois acreditar em Deus geralmente significa acreditar em muitas outras coisas. Num sentido geral da história. No triunfo dos bons, no castigo dos maus. Significa acreditar, sobretudo, que a vida não termina aqui e que cada um dos que perdemos pelo caminho reencontraremos no além. Essa é a parte que eu mais invejo na fé: o adeus como um até logo.

Por paradoxal que pareça, este aspecto mais sofrido do ateísmo (a fé na finitude) é também o que mais me dá forças para enfrentar o desamparo e seguir vivendo ao Deus (não) dará. Olho para a unha do meu mindinho e penso: quantos zilhões de acasos cósmicos, 
colisões de nebulosas, almôndegas de moléculas, hecatombes de amebas, fugas de lêmures, dentadas de primatas, astrolábios de navegantes, esbarrões em bailes de Carnaval e/ou encontros com hora marcada foram necessários, exatamente na ordem em que ocorreram desde “o princípio do drama e da flora” para que a unha do meu mindinho esteja aqui, agora, sendo indagada por um cérebro pasmo diante da infinita improbabilidade e da majestosa insignificância dessa unha, desse mindinho, desse cérebro? Sem nenhum objetivo, aconteceu de eu ser gente. Sem nenhum objetivo, acontecerá de eu não ser. Este me parece um milagre muito mais grandioso do que o “Fiat lux!”, a arca de Noé, o mar Vermelho se abrindo 
diante do cajado de Moisés.

Confesso que chego até a ter, aqui e ali, as minhas epifanias de ateu. Terça-feira, 15h19, parado na 23 de Maio, olho uma nuvem no céu, vejo um farol refletido numa poça, ouço a buzina de um motoqueiro lá longe, sinto o ar-condicionado do Uber assoprando no meu cotovelo e estremeço: eu estou aqui! 

Na maior parte das vezes, contudo, preciso de alguma mediação para conseguir enxergar a sacralidade do banal. Recorro, então, aos sacerdotes da minha não religião. Leio as crônicas do Rubem Braga, os poemas do Fernando Pessoa, do Drummond, da Szymborska. Cientistas como Richard Dawkins, Stephen Jay Gould e Oliver Sacks também me ajudam a trocar o medo pela beleza na contemplação do mistério.

É difícil falar dessas coisas sem soar clichê como um livro de autoajuda, um budista de palestra motivacional, um carpe diem de rótulo de achocolatado. Deixo-os, portanto, com Wislawa Szymborska, nobilíssima poeta polonesa que nas últimas semanas tem me posto curvado em devoção, cinco vezes ao dia, virado para a Cracóvia: “Feira dos milagres”. “Um milagre comum:/ isso de acontecerem muitos milagres comuns.// Um milagre normal:/ no silêncio da noite/ o latido de cães invisíveis.// Um milagre entre tantos:/ uma nuvenzinha etérea e pequena/ que consegue ocultar a lua grande e pesada./ (...) Um primeiro milagre melhor: as vacas são vacas// Um outro não pior:/ este e não outro pomar/ desta e não outra semente./ Um milagre sem fraque nem cartola:/ pombas brancas levantando voo.// Um milagre —pois como chamá-lo:/ o sol hoje nasceu às treze e catorze/ e vai se pôr às vinte mais um minuto// Um milagre que não causa tanto espanto quanto devia:/ há na verdade menos de seis dedos na mão,/ porém mais de quatro// Um milagre, é só olhar em volta:/ o mundo onipresente.// Um milagre extra, como extra é tudo:/ o inimaginável/ é imaginável.”

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.