Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Casas Buri & Garfunkel

Aquele subgerente de almoxarifados é o antídoto contra toda a empulhação

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Homem toca violão. Ilustração por Adams Carvalho/Folhapress
Adams Carvalho/Folhapress

O cabelo meticulosamente penteado pro lado, rareando no alto e cheinho nas laterais, dá à figura um ar jenjulão de Chevy Chase numa "Sessão da Tarde" dos anos 80. A roupa também não ajuda: uma camisa de manga comprida enfiada para dentro da calça e um coletinho de lã no melhor estilo "tricotado pela vovó", com listras horizontais que passeiam pelos recantos mais depressivos da tabela Pantone: marrom, cinza, bege, bordô. Então, no colo, o elemento destoante: um violão.

Se você desse com o vídeo no Facebook sem saber de quem se trata, poderia levantar algumas hipóteses. Um subgerente de almoxarifados das Casas Buri encerrando a convenção anual de funcionários, em 1979? Um pastor luterano participando de um show de calouros do SBT, em 1983? Um professor de química na formatura do ginásio, em 1977, tocando sua composição baseada na tabela periódica dos elementos, "Hoje Li Robinson Crusoé em Francês"? Jamais, caso já não conhecesse o jovem ancião, você suspeitaria tratar-se de uma das maiores estrelas da música pop mundial: Paul Simon. 

Poderíamos botar a culpa na época. O vídeo é de 1976, período de certo hiato cultural: o tie-dye dos hippies da década de 60 já estava desbotando por completo e o rosa-choque dos anos 80 ainda não havia surgido de patins, viseira e chicletes. No vídeo, porém, ao lado do Paul Simon está George Harrison, com uma densa cabeleira, uma blusa dourada brilhante, botas de caubói: enfim, um rock star. O problema, aparentemente, é do Paul Simon. Nunca, em 41 anos chafurdando em música pop, encontrei pior "physique du rôle". (Lá longe, em segundo lugar, vem aquele radiologista-reumático-com-cara-de-quem-bebeu-a-noite-passada-inteira-depois-de-ter-sido-abandonado-pela-mulher: Phil Collins). Curioso para saber o que o subgerente de almoxarifados das Casas Buri e o ex-Beatle tocarão juntos, dou play no vídeo. E olha só que coisa: bastam alguns acordes de "Here Comes the Sun" para que todo o meu estranhamento– diria até, minha repulsa– seja solapado pela admiração. Chevy Chase, camisa pra dentro, coletinho da vovó, tudo desaparece e fica só a beleza da música.

A arte é um dos campos em que mais há empulhação. O sujeito compra uns óculos de aros grossos, apresenta uma barba de cinco dias e diz: sou escritor. Veste um macacão jeans sem camisa, calça umas havaianas cor de rosa e declara: sou pintor. Comete meia dúzia de metáforas sem maiúsculas ou pontuação, empilha uma sobre a outra, sai pra rua de chapéu fedora e encara superior a prosaica humanidade: sou poeta. Escreve um roteiro sem pé nem cabeça, filma tudo tremidinho, monta fora da ordem, coloca uma trilha sonora de berimbau eletrificado sobre gritos de uma mulher parindo (tocado de trás pra frente) e, porque corta ele mesmo o próprio cabelo, convence Deus e o mundo de que é cineasta, iconoclasta, visceral et cetera e tal.

Vestido de subgerente de almoxarifados das Casas Buri, contudo, ao lado do ex-Beatle, Paul Simon se garante no gogó e no violão. É o antídoto contra toda a empulhação, a empáfia, o beletrismo, a afetação. É a criança gritando "o rei tá nu!" e o próprio rei, nu, provando sua majestade. Eu aqui, com meus aros grossos e calça social, Nike Air Jordan vintage e barba por fazer, tentando acertar a medida precisa entre a seriedade e o desprendimento, FFLCH e Tarantino, me deprimo. Com bastante empenho (e mais cabelo), talvez chegasse, um dia, quem sabe, a sub-Garfunkel das letras tupiniquins. 

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