Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Friagem

Essa brisa insidiosa que entra em casa trazendo vapores de ódio e burrice

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Minha amiga Tati, inquilina desta laje às sextas-feiras, é extremamente inteligente. Entre outros talentos, tem uma espécie de visão raio-X capaz de enxergar o ridículo sob os aventais de chumbo com que ele comumente se protege: a arrogância, a prepotência, o pedantismo. Eu ainda estou iludido com uma pessoa, uma peça, um livro, aplaudindo os supostamente belos trajes reais quando ela já está rachando o bico e gritando “o rei tá nu! Olha a bunda do rei!”.  ​

Ilustração
Adams Carvalho/Folhapress

Acontece que até as mentes mais argutas têm lá as suas crendices: a Tati acredita em friagem. Como uma tia interiorana gritando na varanda “volta pra casa, menino, vai pegar sereno!”, ela tem certeza absoluta de que o vento traz da rua vapores mórbidos: basta uma lufada para cair de cama. 

O venerável Drauzio Varella, morador de outra laje, no bairro vizinho da Ilustrada, já escreveu sobre a “friagem”. Em sua incansável cruzada iluminista, Drauzio desmistificou os terríveis demônios eólicos. Se você ficar pelado numa câmara fria vai entrar em hipotermia e aí, sim, seu sistema imunológico será afetado. Mas o vento, a friagem, o sereno, podem inocular no máximo alguma melancolia, algum langor poético. 

O escritor Paulo Coelho foi colocado numa câmara fria, pelado, depois de ser torturado por agentes da ditadura em maio de 1974. Ele narrou a terrível experiência em texto para o Washington Post, republicado pela Folha no último domingo (31/3). No mesmo dia, o presidente e muitos brasileiros comemoravam o golpe, afirmando que não houve golpe, e aplaudiam a ditadura, afirmando que não houve ditadura. Paulo Coelho que o diga.

Eu estava aqui em casa, de noite, naquele domingo, quando me percebi tenso. Os ombros curvados, mãos fechadas, os dentes travados. Tentei entender o que estava acontecendo. Havia tido um fim de semana delicioso com a família, na casa da minha avó, em Petrópolis. Tenho emprego, saúde, 978 séries para ver na Netflix, HBO, Amazon Prime e milhares de livros nas estantes gritando “Me leia! Me leia! Me leia!”. 

Me dei conta, então, que eu estava tenso pelo Paulo Coelho. Em algum lugar da minha cabeça ele continuava tremendo, nu, numa câmara fria depois de levar choques, socos e pontapés. Também dentro da minha cabeça havia milhares de brasileiros comemorando o regime que fez, repetidamente, esse tipo de coisa e dentro da minha cabeça, sem perceber, eu debatia com cada um desses brasileiros.

A Tati tem razão. A friagem me deixou doente. Essa brisa insidiosa que entra em casa através dos jornais, da TV, das redes sociais, trazendo os vapores de ódio, de burrice, de intolerância que exalam da fossa de Pandora aberta em algum momento no início da década e que não para de transbordar. Eu respiro esses vapores todo dia, os alvéolos os absorvem e eles vão direto pro cérebro. Está tudo lá: o nazi-comunismo do desmiolado chanceler, o homúnculo david-lynchiano Ricardo Vélez, o presidente “Cavalão” ensinando as crianças a fazer arminha com as mãos, a família do chefe de uma milícia carioca trabalhando no gabinete do Flávio Bolsonaro, o desmonte do Ibama feito pelo ministro antiambiente Ricardo Salles, os tuítes do guru da Presidência, essa mistura de Osho, bituca de Minister e palhaço Krusty, dos Simpsons. 

Preciso arranjar um jeito de vedar essas janelas ou de me abrigar da brisa infecta, até o dia em que o país caia em si, grite “o rei tá nu! Olha a bunda do rei!” e todos nós possamos respirar aliviados.

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