Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Bem-vindos a Chernobyl

É impossível ler sobre o aquecimento global sem ficar apavorado feito um cientista em "Chernobyl"

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Nos dois primeiros episódios da série "Chernobyl", da HBO, cientistas exasperados tentam convencer os superiores na usina e no governo soviético que um dos reatores nucleares explodiu e está jorrando radioatividade sobre a Europa. 

A resposta dos superiores, exemplar da estupidez surrealista de uma burocracia totalitária, é sempre a mesma: impossível, um "reator RBMK não explode". A posição oficial é que havia somente um pequeno incêndio no telhado.

"Eu fui lá, eu vi!", repetem os cientistas, um após o outro, antes de vomitarem, verterem sangue pelos poros ou caírem duros. Apenas quando a radioatividade é detectada na Suécia, Mikhail Gorbatchov encara seus ministros com uma expressão de "camarada, deu ruim..." —naquela altura, a radioatividade liberada já era superior à de vinte bombas de Hiroshima.

Só mesmo no totalitarismo soviético, pensei, assistindo à série. Então fui ler na revista Piauí de junho o trecho do livro "A Terra inabitável: uma história do futuro", do jornalista David Wallace-Wells, que sairá pela Companhia das Letras no mês que vem. Impossível terminar as 11 páginas sobre o aquecimento global sem ficar apavorado feito um cientista em "Chernobyl". 

Em 1997, ano em que foi assinado o Protocolo de Kyoto, um aquecimento de 2°C era considerado o cenário mais drástico. Nos 20 anos seguintes, porém, jogamos mais carbono na atmosfera do que nos vinte anteriores. 

Adams Carvalho/Folhapress

Hoje parece que, mesmo se todos os países seguissem o combinado no Acordo de Paris, de 2016 —coisa que não estamos fazendo—, 2°C a mais é um cenário poliana.

Num mundo 4°C mais quente, em 2100, boa parte da África, da Ásia, das três Américas e da Austrália ficarão inabitáveis.

Haverá dengue e febre amarela até nos países nórdicos. A previsão do tempo não nos alertará para sol ou chuva, mas para incêndios e tufões. A escassez de alimentos e a migração de 1 bilhão de pessoas levará à fome e guerras. Os custos causados por estas condições podem puxar a economia global a um "estado estacionário". 

Não precisamos, contudo, esperar até 2100 para sentir os efeitos da nossa burrice. 

Entre 2015 e 2017, Houston recebeu dois furacões que, de tão enormes, só costumavam formar-se a cada 500 anos. Em uma semana de 2018, ondas de calor varreram o hemisfério norte e mataram 54 pessoas no Québec, Canadá. 

Na mesma semana, cem incêndios castigaram o oeste dos EUA e, nas semanas subsequentes, 1,2 milhão de pessoas ficaram desabrigadas com chuvas no Japão e 2,45 milhões, na China. O mundo como o conhecíamos já acabou.

Estima-se que a poluição causada pela queima de combustíveis fósseis mate 7 milhões de pessoas por ano. Um holocausto a cada 12 meses —e para quê? Para darmos like em foto de gato no Instagram? Para manter ligados computadores que cultivam bitcoins? Pra irmos de carro à farmácia comprar ansiolítico pra aplacar a angústia de não sabermos o que estamos fazendo com a própria vida enquanto destruímos a vida dos nossos filhos e netos? 

Nossa relação com o aquecimento global é o maior caso de delírio coletivo da história da humanidade. Enquanto alguns siderados (ou mal-intencionados) negam o fenômeno, a maioria daqueles que o reconhecem, como eu, fazem quase nada para freá-lo. 

Eu deveria abandonar o carro, sair batendo panelas, exigir mudanças do governo, da indústria e do agronegócio, mas apenas recuso canudos e sacolinhas plásticas, me sentindo um Martin Luther King da sustentabilidade. Ah, esses russos...

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