Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata
Descrição de chapéu

Nas nuvens

Diziam que era impossível, fui lá e fiz churrasco no apartamento

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Depois que Fernando de Magalhães completou a circum-navegação da Terra, em 1522, Amundsen chegou ao centro da Antártida, em 1911, Tenzing Norgay e Edmund Hillary alcançaram o pico do Everest, em 1953 e Neil Armstrong pisou na Lua, em 1969, restava ao homem um último desafio. Muitos acreditavam que fosse impossível. Diziam que as leis da física, da química e do condomínio teriam que ser mudadas antes que um ser humano lograsse êxito na empreitada: o churrasco em apartamento.

Não, varanda gourmet não conta —e não vai aqui nada contra a varanda gourmet. Muito pelo contrário. Quando a moda surgiu, lá pelos anos 2000, alguns esnobes torceram o nariz. Acredito que o preconceito contra a varanda gourmet tenha sido o precursor do "Esse aeroporto está parecendo uma rodoviária": como se o churrasco alçado às alturas pela classe média literalmente ascendente rebaixasse o status do edifício.

Ilustração
Adams Carvalho/Folhapress

Nada disso. Ouso dizer, num arroubo ufanista, que a varanda gourmet é a tropicalização da arquitetura neoclássica, a carnavalização zecélsica da dura poesia concreta de nossas esquinas. Mas fazer churrasco na varanda gourmet não é nenhum desafio: é como chegar ao pico de Everest de elevador. A empreitada diante da qual nos encontrávamos desde que existe prédio e desde que existe churrasco era grelhar as carnes na cozinha ou mesmo na sala contando apenas com as próprias janelas para escoar o fumacê.

Pois tenho a imensa felicidade de lhes contar que, no último domingo, grelhei 500 g de linguiça, meia dúzia de asas de frango, um quilo de chorizo e outro de picanha na bancada da cozinha.

O mérito não é meu, mas dos engenhosos inventores da churrasqueira portátil que, no site da empresa e no vídeo do youtube, prometem brasa sem fumaça. A ideia é tão simples quanto genial. O carvão fica numa grade cilíndrica no centro de uma tigela de metal e a grelha é disposta em torno do cilindro, de forma que a gordura não cai na brasa, mas no fundo da tigela.

Para a estreia chamei meu pai, meu irmão, minha irmã, cunhado, cunhada, sobrinha, tio e avó. Acendi o carvão, coloquei as carnes e a família toda se aglomerou atrás de mim, em reverencioso silêncio. Durante dez minutos ficamos ali, admirando a brasa, enfeitiçados como Moisés diante da sarça flamejante. De fato, nada de fumaça.

Após dez minutos, porém, quando a gordura começou a acumular no fundo da tigela, labaredas passaram a surgir do braseiro como pequenas explosões solares. Perdi três asinhas de frango, todos os pelos do braço direito e gritei para tirarem as crianças da cozinha. Depois, para tirarem da sala —embora já não as visse através fumaça, sabia que estavam ali por causa das tosses.

Apesar do nevoeiro, que meu cunhado apelidou gentilmente de "sauna gaúcha", o churrasco ficou excelente, de modo que todos os presentes decidimos lidar com o detalhe da neblina da maneira como qualquer família normal lida com um assunto difícil: silenciando-o. "Incrível como não faz fumaça", disse meu pai, em meio a um cumulunimbus. "Nenhuma!", comemorou meu tio —ou meu cunhado, não dava pra enxergar direito.

Sinto-me extremamente realizado. Diziam que era impossível, fui lá e fiz. (Na verdade não fui a lugar nenhum, fiquei aqui em casa e fiz e é justamente aí, ou melhor, aqui, que está o feito). Mas e a fumaça, Antonio? Faz parte, queridão. No final das contas, o que entrou pra história é que Magalhães deu a volta na Terra ou que voltou pra casa imundo, com piolho e escorbuto?

*

No fim da tarde de domingo, recebo este email da Mariana Versolato, editora de Ciência, Saúde e Ambiente da Folha:

“Oi Prata, tudo bem? 

O Salvador Nogueira, seu colega de colunismo na Folha, me escreveu o abaixo:

'Mari, maravilhoso, como sempre, o texto do Antonio Prata, sobre o churrasco no apartamento [valeu, Salvador!!!]. Ri muito. Mas [eita, o que?] ele termina falando que Fernão de Magalhães voltou imundo da circunavegação do globo. Na verdade, ele morreu antes de concluí-la [Vixi, Maria...]. A tripulação terminou a viagem sem ele. Seria legal dar um toque, acho, porque um leitor ainda mais mala que eu certamente o fará. :-)'

Bj”

De Antonio Prata para Salvador Nogueira:

“Caro Salvador. Sou seu leitor e gosto muito do que vc escreve. É raro saber traduzir questões tão complexas para o grande público, como vc faz. A Mariana me passou seu email. Vacilo meu! Imaginei que o cara tinha completado a volta. E dei de barato a sujeira, o piolho e o escorbuto. Pelo visto, errei feio. Vou corrigir na próxima coluna. Obrigado!”

De Salvador Nogueira para Antonio Prata:

“Antonio,

Prazer receber mensagem sua. Também curto muito seus textos, e este teria sido mais um arremate perfeito, se apenas fosse verdade. Quase quis que fosse, por sinal. ;-)

Abraço,
Salvador”

De Antonio Prata para Salvador Nigueira: 

“Mas, cazzo, como ele é creditado por ter dado a volta se morreu antes?!”

De Salvador Nogueira para Antonio Prata:

“É que não tinha Eurico Miranda naquela época pra impugnar no STJD. :-P”

De Antonio Prata para Salvador Nogueira:

“Li algo na internet. Parece que segundo o VAR ele não voltou pra casa, mas deu a volta. É isso?”

De Salvador Nogueira para Antonio Prata:

“Ele não concluiu a volta. Foi substituído aos 35 do segundo tempo, depois de levar uma entrada criminosa nas Filipinas, em abril de 1521. Quem foi pro jogo no lugar dele foi o espanhol Juan Sebástian Elcano, que comandou as duas caravelas que sobraram (eram cinco na saída) até o final do caminho, de volta à Espanha, em 1522. Magalhães foi o campeão moral, tendo sido o idealizador da viagem. Hoje há quem considere mundial. Na época, era Copa Rio mesmo. Saíram 240 marinheiros, voltaram 18. E depois dizem que ir a Marte é que é difícil. :-)”

De Antonio Prata para Salvador Nogueira:

“Cara, que incrível. Isso não merece uma errata, mas uma coluna. Acho que vc seria muito mais indicado do que eu para escrevê-la.
Se é que já não escreveu. Dá inclusive um puta filme... rs.
Abs!”

De Salvador Nogueira para Antonio Prata:

“É um épico. Apesar de meu negócio ser mais da atmosfera pra cima, li uns 15 anos atrás um livro que contava as minúcias da viagem. "Além do fim do mundo", de Lawrence Bergreen. É fantástico.

Abraço,
S.”

De Antonio Prata para Salvador Nogueira:

“Vou atrás. Obrigado!”

De Antonio Prata para Salvador Nogueira:

“E agora que a Terra é plana, vão ter que refazer a viagem...”

Erramos: o texto foi alterado

Fernando (Fernão) de Magalhães não chegou a retornar de sua viagem ao redor do mundo, como afirma o texto. Ele morreu onde hoje estão as Filipinas em 1521, cerca de 17 meses antes do fim da expedição.

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