Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Claudia Cardinale bate na porta

Sugestões para atualizar os castigos do reino de Lúcifer

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Quando Dante Alighieri escreveu sua “Divina Comédia” e criou os castigos do inferno, no início do século 14, o leque de flagelos imagináveis era infinitamente menor do que hoje. Naquela época, o poeta não tinha como vislumbrar horrores futuros tais como o trânsito na Rebouças, a versão de “Mariana Conta Um” da Galinha Pintadinha, o atendente da Claro diante da frase “quero cancelar meu contrato” respondendo com “pois não, senhor, mas antes disso sou obrigado a te oferecer todos os nossos 243 pacotes”; suplícios contemporâneos que fazem com que as pobres almas hodiernas sonhem com os rios de fogo, implorem pelas tempestades de excrementos, urticárias eternas ou geleiras sem fim dos nove círculos do inferno dantesco. 

Com o nobre intuito de atualizar o reino de Lúcifer com novos castigos capazes de encorajar as velhas virtudes, mando aqui algumas sugestões. 

 
Ilustração
- Adams Carvalho/Folhapress

Por exemplo: o pecador morre e acorda diante de um computador. Está aberto na Amazon, com um cupom de US$ 10 mil. Ele tenta fazer login, mas percebe que esqueceu a senha. Aperta no botão “esqueci minha senha” e a Amazon diz que enviou uma nova senha ao email cadastrado. Ele percebe que o email cadastrado é o Hotmail, que não usa desde 2011. Tenta entrar no Hotmail, mas esqueceu a senha. Clica em “esqueci minha senha” e o Hotmail informa que enviou a senha por SMS para seu celular. O celular foi roubado em 2015 e ele então entra no site da operadora para tentar resolver. Mas também não tem a senha do login no site da operadora. Ele clica em “esqueci minha senha” e a operadora informa que mandou para seu Hotmail. E assim por toda a eternidade.

O pecador morre, acorda e está às 4h11 da madrugada na última poltrona de um ônibus da Litorânea descendo a serra de Taubaté. Ele tem um sono atroz, mas a última poltrona do ônibus não reclina, sua cabeça tomba pros lados a cada curva, ele está bem debaixo do ar-condicionado, a pessoa ao seu lado ronca e a porta do banheiro, com o trinco quebrado, abre e fecha, abre e fecha, abre e fecha, bafejando odores oriundos dos lagos putrefatos da edição original da “Divina Comédia”.

O pecador morre, acorda, está na sala de espera do dentista. Sua consulta é às 17h. São 17h30. A secretária manda entrar o cliente das 13h30. Só há pra ler IstoÉs de 2003. A bateria do celular acaba. Ele está sem carregador. A pessoa ao lado fala “esfriou, né?” e logo engata num papo infinito (literalmente) sobre seu tratamento anti-halitose —que ainda não começou.

O pecador morre. Acorda. Está num pasto, num morro, numa fazenda. Vários outros pecadores caminham pelo pasto, com o celular na mão. Cada um lança um boato de que “a três passos daquele cupinzeiro parece que dá um pauzinho de 3G”, “me falaram que se subir no tronco atrás da poça e esticar o braço, pega um wi-fi da Tim”, mas ninguém jamais consegue sinal e há saúvas e carrapatos e a bateria nunca acaba.

O pecador morre. Acorda. Está num lavabo. Ali dentro o odor do que, percebe, ele acabou de deixar na privada tem o poder devastador de três explosões de Tchernobil. Não há janela no lavabo, mas, curiosamente, há um olho mágico na porta. Ele espia. Na fila estão Scarlett Johansson, Sophia Loren como no filme “Ontem, Hoje e Amanhã”, Claudia Cardinale como no filme “Era Uma Vez no Oeste”, todas as ex-namoradas do pecador com a idade que tinham quando namoravam, acompanhadas dos namorados que arrumaram logo depois, e toda a turma da 5ª série B quando o pecador sofria bullying. Claudia Cardinale bate na porta.

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