Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Nem toda unanimidade é burra

Conteúdo importa cada vez menos, desde que sirva pra gerar likes e lacrar

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Uma pessoa está dentro de um tubo rodando em alta velocidade. A ilustração é feita toda em preto e tons de rosa
Adams Carvalho/Folhapress

Ao afirmar que "toda unanimidade é burra", Nelson Rodrigues não devia imaginar que a frase acabaria se tornando uma unanimidade —ela também, portanto, burra. Para sermos fiéis à máxima é preciso traí-la —o que não deixa de ser um paradoxo bem ​rodrigueano— e dizer que "nem toda unanimidade é burra".

Beber água faz bem. Shakespeare é genial. Todos deveríamos nos esforçar para ser pessoas melhores. Aí estão umas unanimidades nada burras. 

Soam clichê? Sim, mas na maioria das vezes usamos a linguagem para nos comunicar, não para ganhar o Nobel da literatura. Ou melhor, usávamos: em tempos de redes sociais, o conteúdo importa cada vez menos, desde que sirva pra gerar likes, causar, lacrar, enfim, nos trazer fichinhas neste gigantesco cassino online que o mundo se tornou.

Quando a informação vira commodity, passa, como todo produto, a obedecer à lei da oferta e da procura: mais rara a ideia, mais valiosa. A raridade de uma ideia, porém, pode advir não do seu brilhantismo, mas da sua cretinice. Comer um rodo, por exemplo, seria uma ideia tão estúpida quanto original. E nesta época que prefere uma estupidez inédita a uma morna sensatez, o engolidor de rodos certamente teria futuro.

Se eu lançar um livro chamado "Shakespeare, gênio da literatura", dificilmente sairei na capa dos jornais e pipocarei nos seus feeds e timelines. Mas se eu escrever "ShakesPIRO: como o imperialismo inglês e meia dúzia de afetados românticos franceses transformaram um melodrama apelativo em arte profunda", pode ter certeza de que vou fazer barulho.

Em poucos meses, provavelmente, críticos sérios lerão meu livro e provarão que eu sou uma besta quadrada e o William, não. Mas até isso acontecer, já terei escrito para cadernos culturais, debatido em feiras literárias, vou ter saído na Caras de março, fechando o verão, num camarote VIP, abraçando o Faustão.

Neste mundo de competição midiática-digital, não são poucos os que têm como ganha-pão (ou, ao menos, como ganha-like) a estratégia de afirmar que água faz mal, Shakespeare é ruim, tentar ser bom é cretino. Se o único valor é produzir ondas no lago, melhor do que jogarmos comida pros peixes é atirar urânio na água. 

"Vamos combinar que foi original, galera, ninguém antes tinha jogado material radioativo no lago!", "digam o que quiserem sobre o fulano que matou duas toneladas de peixe e contaminou um lençol freático por 20 mil anos, mas ninguém pode negar uma coisa: tá todo mundo falando dele!". 

Em busca do frisson causado pelo esdrúxulo, a mentira se traveste de originalidade, a sordidez, de ousadia. Os dentes afiados da ironia estão prontos para desacreditar qualquer mínimo consenso, afinal, "toda unanimidade é burra". Malala é uma ridícula. Raoni é ridículo. Gandhi era ridículo. Martin Luther King? Sério? Booooring!

Não estou pregando a obediência cega, o conformismo, sonhando com um mundo cor-de-rosa em que não haja discordâncias, agressividade, ruído e sujeira. Grandes artistas e pensadores usaram a marreta. De Nietzsche a Sex Pistols. Eles iam contra o status quo. Tinham coragem de nadar rio acima. É o contrário do que fazem esses Gengis Khans de Twitter, esses enfants terribles de playground, esses niilistas de salão, que fingem discordar em busca de concordância, ofendem para serem aceitos, dizem "fuck you!" e "follow me" simultaneamente. O mundo tá indo pra cucuia e a maior preocupação dessa gente é achar a sacadinha mais sacadosa pra soltar na roda.

Se as coisas continuarem neste rumo, a colisão de um novo meteoro contra o Vale do Yucatán até que parece um final feliz.

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