Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Mensagem na garrafa

Se vivêssemos num mundo decente, a carta de Iudin seria a conversa em cada esquina

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“Endereçado a quem não tiver preguiça de pescar esta garrafa! Ela foi tomada a despeito de todas as ordens e diretivas do MRKh [Ministério da Pesca da URSS] e do governo por marinheiros de verdade, que observam e se lembram das tradições marítimas no dia de celebração do aniversário do marinheiro emérito e capitão dos mares V. A. Iudin, em 21 de março de 1990. Àquele que encontrar esta missiva, peço informar [...] pelo endereço: rua Dmítri Donskôi, cidade de Kaliningrado, 5 [...] Serviço de Pesca Ocidental.”

A garrafa foi encontrada quase 30 anos depois, em 20 de setembro de 2019, na praia de Hermenegildo, RS, “onde termina o Brasil e começa o Uruguai”, conforme a reportagem de Paula Sperb, publicada aqui na Folha, domingo.

A repórter não conseguiu encontrar o “marinheiro emérito e capitão dos mares” Victor Adrianovitch Iudin, mas chegou a um amigo dele, Viatcheslav Simonov, segundo o qual Iudin está vivo, bem, já passou dos oitenta e segue na cidade de Kaliningrado.

Se vivêssemos num mundo decente, que não estivesse à beira do colapso climático, durante uma crise política e uma tragédia social, num país em que a polícia mata meninos e meninas insuflada e acobertada pelos mandatários da nação, a garrafa de Iudin seria a manchete de todos os diários, a notícia principal do Jornal Nacional, a conversa em qualquer esquina on e offline.

Ilustração de homem dentro de uma garrafa transparente no mar. Ele sentado e segura os joelhos dobrados com os braços
Adams Carvalho/Folhapress

Durante a semana, em vez de mandar e receber vídeos escabrosos com adolescentes encurralados em vielas, gritando, enquanto são espancados por PMs, abriríamos entrevistas com as crianças que acharam a garrafa, com os internautas que começaram a traduzi-la e com a turma do Laboratório de Conservação e Restauração de Papel da Universidade Federal de Pelotas, que possibilitou a leitura da missiva úmida e apagada.

Num país ao menos razoável, não passaríamos a semana nos indagando por que, ó céus, o governo tem na pasta de Meio Ambiente quem favorece o desmatamento? Na Cultura quem abomina a arte? Na Justiça um justiceiro? Na Economia um “liberal” tranquilo com a cassação das liberdades? Na Educação um chucro –e sobre o inchancelável chanceler, nem comento.

Se vivêssemos num país que não estivesse aparelhando (e desparelhando) o estado com psicóticos em cujos delírios os Beatles são “satanistas”, livro infantil de fada é heresia e a escravidão é um avanço civilizatório, esta semana teria sido dedicada a responder: onde estava o navio BMRT Andrus Johani quando a garrafa foi atirada ao mar? Que bebida continha a garrafa? Quem a bebeu? Alguém se lembra do que conversaram naquela noite de 1990, tão longe de casa, tão perto do fim da União Soviética, numa “expedição científica para coletar informações sobre lulas e peixes”? Descobriram algo sobre lulas e peixes? Há outros casos de mensagens em garrafas encontradas por aí?

Se não estivéssemos ocupados demais defendendo a Constituição de 1988 (!), a Declaração Universal dos Direitos Humanos (!!), a Lei Áurea (!!!), Copérnico e Galileu (!!!!), terminaríamos o domingo vendo os velhos marujos numa reportagem de TV, orgulhosos e circunspectos, brindando numa modesta sala 
de estar em Kaliningrado. 

Nós aqui, do outro lado do globo e da televisão, com um sorriso meio pasmo no rosto, pensaríamos: que coisa maluca é a vida, que coisa maluca é o acaso, que coisa maluca são os oceanos e os marinheiros e os peixes e as lulas e a ascensão e o declínio dos impérios e sobretudo nós, aqui, olhando e ouvindo e sentindo tudo isso até que mais dia, menos dia.

Depois comeríamos uma pizza com a família, veríamos Robinson Crusoé no streaming e dormiríamos tranquilos.

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