Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Porco, cerveja e civilização

Eis a ordem das criações humanas: churrasco, cerveja, literatura, filosofia

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Na caverna Leang Bulu’Sipong 4, na ilha de Sulawesi, Indonésia, foram encontradas as pinturas rupestres mais antigas de que se tem notícia. As imagens, com 44 mil anos de idade, mostram a caça 
de porcos e búfalos.

Não me surpreende que o primeiro registro pictórico represente a preparação de um churrasco, uma vez que o primeiro registro da escrita são uns garranchos cuneiformes sobre cerveja.

Trata-se de um tablete de argila de 3.100 A.C., encontrado em Uruk, atual Iraque, onde constam, entre outras informações em sumério, três jarras da bebida preferida de homens, mulheres e crianças nos bons tempos da Mesopotâmia. (Já tendo revelado o prato principal e a bebida no desabrochar da humanidade, a arqueologia busca agora, imagino, algum vestígio da sobremesa).

Tive a oportunidade de visitar o tablete mesopotâmico no British Museum, em 2012, quando cobri as Olimpíada de Londres para a Folha.

Ilustração em vermelho com estilo semelhante ao de arte rupestre. No centro, um boi está espetado em um garfo, há duas canecas nas laterais da ilustração central, uma de cada lado
Adams Carvalho/Folhapress

Se a minha porção dionisíaca animou-se ao ver a cerveja tão intimamente ligada às origens da civilização, meu lado apolíneo ficou um tanto frustrado ao se dar conta de que o texto mais antigo já encontrado não era um poema, a descrição do crepúsculo no Eufrates, o trecho de um mito narrando, sei lá, um homem-polvo a roubar o manjar sagrado das entranhas da deusa Primavera; era um holerite.

Segundo os historiadores, lá em Uruk o trabalhador era pago diretamente com cerveja. Não é como hoje, que o trabalhador é pago com dinheiro para só então trocá-lo por cerveja. Neste aspecto, sem dúvida, o mundo piorou –embora a cerveja, desconfio, deva ter melhorado bastante. O lúpulo, por exemplo, este primo irmão da Cannabis, ouro verde das IPAs, só foi introduzido à receita na idade média.

Outra constatação que me fez caminhar meditabundo por entre as carrancas e sarcófagos do museu britânico foi a de que o fundador da minha profissão não trabalhava com uma lira, mas com um ábaco.

Sim, amigos, a origem da escrita não está nos poetas, mas nos contadores. (O que, pensando bem, muito me honra, queridos Reginaldo e Amélia, pois sois vós da contabilidade seres superiores a nós da literatura, prova disso é que eu pago à Oliveira & Nogueira, todo mês, várias jarras de cerveja para cuidarem dos meus impostos, enquanto jamais recebi daí, em troca das minhas estórias, uma mísera latinha de Skol).

Meditabundo também fiquei estes dias, zanzando pela casa, depois de ler sobre os porcos da Indonésia. Séculos de pesquisa sobre as origens da civilização e o que encontramos? Churrasco e cerveja.

Meia dúzia de mensagens trocadas no grupo dos amigos e o que combinamos? Churrasco e cerveja. Quarenta e quatro milênios me separam dos pintores da caverna de Sulawesi, cinquenta séculos me separam dos trabalhadores de Uruk, mas a costeleta e o malte fermentado nos unem. 

A história mais antiga que conhecemos, datada do século 4 A.C., também surgiu na Mesopotâmia e conta a epopeia de Gilgamesh. O rei da Suméria andava em busca da vida eterna quando trombou com uma divindade, Siduri.

A deusa lhe deu o seguinte conselho: deixe de lado esse papinho de imortalidade e aproveite os prazeres terrenos; encha a pança, dance, alegre-se, banhe-se na água fresca, olhe a criança segurando a sua mão e abrace a mulher ao seu lado, ó, jacu! (“ó, jacu” foi uma liberdade poética minha. Perdão). Isso tudo nós já sabíamos 3.500 anos antes do nascimento de Sócrates e Platão.

Eis a ordem das criações humanas: churrasco, cerveja, literatura, filosofia. Não é preciso ser historiador nem arqueólogo para perceber que estamos em franca decadência.

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