Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Amarrado às cordas

Ser chamado de 'marreco engarrafado' calou fundo em minh'alma

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Em 2013, fui ao “Programa do Jô”. Segundo o protocolo não escrito (em pedra) da inexistente (onipresente e onisciente) Associação Brasileira de Normas Técnicas (Artístico-Literárias), eu deveria dedicar ao evento um bocejo, um resmungo ou, no máximo, uma tirada irônica. Confesso, porém, que fiquei contente com a coisa toda. Camarim com nome na porta, “Antonio Prata, vem pra cá!”, “Jô, posso ver que que tem dentro da caneca?” e até um discreto, porém detectável “ahhhhhhhhhhh” no final da conversa me trouxeram uma inegável satisfação profissional. Vaidade? Pode ser. E daí?


E daí que justo em 2013 certa empresa abria capital na bolsa de Nova York, vendia todas as 70 milhões de ações e rapidamente transformava cada indivíduo do globo numa patusca alcoviteira  machadiana: o Twitter. “Véi, esse @antonioprata aí tem mó voz de marreco engarrafado!” —uma das generosas senhoras tuitou.

Eu sempre soube que minhas cordas vocais estavam mais para Rick Moranis do que pra Vicente Celestino: falo meio esganiçado, ceceio (pronuncio os “ésses” como “éfes”, tipo o Romário —maf fem a compenfafão futebolíftica), engulo sílabas quando nervoso e berro quando empolgado. O que eu não sabia é que o conjunto destas virtudes poderia ser tão bem resumido por “voz de marreco engarrafado”. Fiquei #chateado. Ele tinha #razão.

“Voz é destino”, diria Freud —se o tivesse dito. Estamos inexoravelmente amarrados às nossas cordas vocais. Há plásticas das pálpebras, dos lábios vaginais, tratamentos capilares e implantes, bronzeamento e despigmentação, lentes coloridas, hormônio de crescimento, redução de estômago e até sapatos com saltos escondidos dentro para, digamos, empoderar os verticalmente desfavorecidos: mas com a voz não se pode fazer nada.

Ilustração de pato cantando em um microfone antigo
Adams Carvalho/Folhapress

Claro, existe a fonoaudiologia, mas a fono não faz milagres. Não transforma uma Tetê Espíndola numa Simone. O assunto é tão definitivo que nem os picaretas de plantão metem o bedelho. Ou você já recebeu um email tipo “Enlarge your voice”? Viu propagandas de “implantes vocais?” “Clareamento silábico?”.

Comprou no aeroporto o livro “Fala foda: como ter uma voz foderosa e calar a boca de todo mundo”? A voz é como um chassi, uma marca que permanece intacta mesmo que mexamos em toda a lataria.

Apesar de “marreco engarrafado” ter calado fundo em minh’alma, nunca entendi exatamente o significado. Estará o marreco preso num engarrafamento —gritando, esbaforido?— ou será o engarrafamento dentro do marreco? Tratar-se-ia de um marreco constipado? Um marreco que, em vez de fazer “qué qué qué”, faz “quê quê quê”? Ou “quã quã quã”?

Exagerei: “quã quã quã” não é um “marreco engarrafado”, é um marreco imitando o Jânio Quadros. Jânio, aliás, era um membro de minha minoria, a dos vocalicamente diferenciados. Apesar de grande orador, não se tratava exatamente de música o que produzia sua garganta. (Soava como um ganso engarrafado.)

Veja como são as coisas: a proximidade de “Jânio” + “engarrafado” fez surgir aqui uma última interpretação da trolada: o marreco engarrafado é um marreco dentro de uma garrafa, com seu “qué qué qué” sendo abafado pelo vidro.

Veja como são as coisas 2: “marreco dentro de uma garrafa” me remeteu à frase do Vinícius: “O uísque é o melhor amigo do homem. O uísque é o cachorro engarrafado”. Vinícius, aliás, era outro membro da minoria: parecia estar sempre com o nariz entupido —mas nem por isso deixou de ter uma brilhante carreira de cantor, o que talvez indique que voz, ao contrário do que (não) disse Freud, não é destino. No trânsito, constipado ou dentro de uma garrafa, grasno de felicidade.

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