Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Preocupados com os próprios narizes

Escolhemos narizes bonitinhos para 1% em vez de saúde para todos

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Diante do espelho, na terceira semana de quarentena, corto os pelos do nariz. Uso, para esta tarefa tão comezinha, uma moderna máquina da Panasonic. Sua função principal é cortar cabelo e barba, mas removendo-se a peça com as lâminas paralelas —implacáveis com a queratina, gentis com a epiderme– encaixa-se um tubinho preto e a traquitana dá às minhas fossas nasais um tratamento digno de “Brazilian wax”. Custou menos de R$ 100, na Amazon.

Olho a máquina e lembro do Napoleão: do alto destas engrenagens, 40 séculos me contemplam. Arquimedes, Aristóteles, Euclides, Pitágoras, Leonardo da Vinci, Rutherford, George Ohm, Thomas Edison, Linus Pauling e Nicola Tesla são apenas alguns dos nomes diretamente envolvidos no corte preciso dos meus pelos.

Ilustração Antonio Prata
Publicada neste domingo, 5 de abril de 2020 - Adams Carvalho

Não nos esqueçamos, porém, das humanas, pois sem um mundo estável, sem sociedades relativamente prósperas e pacíficas, estes gênios estariam cavoucando a terra atrás de tubérculos ou se matando com tacapes e não poderiam dedicar-se à ciência. Meu nariz deve agradecer também, portanto, a Sócrates, Platão, Aristófanes, Sófocles, Ésquilo, Ovídeo, Virgílio, Sêneca, Cervantes, Shakespeare, Hobbes, Locke, Rousseau, Montesquieu, Descartes, Camões, aos pais fundadores dos EUA, Walt Whitman, Adam Smith, Karl Marx, Keynes, Churchill. A lista vai longe, passa pelo teto da Capela Sistina e pela lama de Woodstock.

Agora, com o mundo de pernas pro ar, percebo o absurdo contido nesta maquininha. Faltam máscaras hospitalares em diversos países. Faltam reagentes para testes. Faltam leitos e respiradores nos hospitais. Falta coordenação nas ações globais contra a pandemia. Não tínhamos um plano, um consenso sobre o que fazer diante de um vírus contagioso e letal, mas temos uma fantástica máquina da Panasonic para cortar os pelos do nariz.

Não foi por falta de aviso que o corona penetrou na humanidade como a Alemanha na defesa brasileira do 7 x 1. O filme “Contágio” é de 2011. O Ted Talk do Bill Gates avisando que ia dar ruim é de 2015 e tem 25 milhões de visualizações. A Netflix trouxe a série “Pandemia”, há alguns meses.

E a realidade, esta plataforma continuamente subestimada, estreou só na última década os blockbusters Ebola, Sars e Mers —sem falar em produções mais antigas como zika, dengue, Aids, varíola, tifo, febre amarela, tuberculose e o grande clássico: gripe espanhola. Onde nós estávamos com a cabeça nos últimos cem anos que não fomos capazes de nos preparar? Estávamos concentrados em produzir coisas como, por exemplo, minha máquina de cortar pelos.

O estranho, penso agora, não é o mundo todo estar trancado dentro de casa nas últimas semanas, é o mundo ser organizado (sic) como era nas últimas décadas. Bilhões de dólares gastos em comida pra cachorro enquanto falta dinheiro para pesquisa em remédios para humanos. Roberto Justus é milionário e o Tom Zé já quase passou fome. O Brasil gastou bilhões com a Copa e a Olimpíada antes de garantir saneamento básico à população. (Na época, confesso envergonhado, não achei absurdo.)Imagino que mais tempo, dinheiro e neurônios foram depositados na logística que torna possível a entrega da minha maquininha Panasonic pela Amazon do que na preparação do mundo para esta pandemia. Tá muito errado.

Uma das oportunidades que surgem quando tudo deixa de ser como era é que não dá mais para normalizar bizarrices alegando que “é assim que as coisas são”. As coisas são como quisermos que sejam. Nós escolhemos narizes bonitinhos para 1% em vez de saúde para todos. Podemos desescolher.

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