Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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2050: memórias da pandemia

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“Cara, engraçado, mas a primeira coisa que me vem à cabeça sobre aquela época é eu picando cheiro verde. Como era muito arriscado ir no mercado, eu comprava uns seis maços de salsa e cebolinha, desinfetava num balde de Hidrosteril, picava tudo e congelava numas sacolas plásticas. Não sei, mas tinha alguma coisa reconfortante, tranquilizadora, em saber que havia quilos de salsa e cebolinha no congelador. Não faz muito sentido, tô ligado: posso morrer semana que vem, mas enquanto estou vivo o meu molho ao sugo vai sair delicioso...”.

Adams Carvalho

“Eu era entregador de aplicativo, parceiro. Pega só a visão: nós não tinha máscara, álcool gel, a empresa não dava nada. O cliente mandava nós no supermercado fazer compra que era o dobro do nosso salário, aí nós entregava, o cliente falava que tinha pedido manteiga da gringa sem sal e tinha vindo com sal e dava polegar pra baixo na avaliação e nós se ferrava. A minha sorte é que eu sofri um acidente e tive que parar com as entregas até o fim da pandemia”.

“Sabe que eu fui muito feliz naquele período? Como disse meu amigo Celsinho, naqueles dias tava tudo errado, mas não era por culpa nossa. Pela primeira vez na vida o que me fazia sofrer não poderia ser resolvido por uma atitude minha. E essa percepção me trouxe leveza. Li, trabalhei bem de casa. Fiz uma hortinha na área de serviço. Quando saiu a vacina, lembro que pensei, assustada: droga, daqui pra frente todo o meu sofrimento vai ser minha responsabilidade”.

“Eu passei um ano bêbado e fumando maconha, então eu não lembro de muita coisa. A imagem daquela época pra mim é um Zoom desfocado. Também lembro do primeiro gole na cerveja vir com gosto de cachaça, por causa do álcool borrifado na lata”.

“Eu tinha cinco anos na época da pandemia, então eu não lembro de muita coisa. Lembro que de uma hora pra outra meus pais liberaram iPad e doce. Antes, iPad e doce era só no fim de semana. Acho que eu passei um ano comendo leite condensado e assistindo a Patrulha Canina. Até hoje, quando como alguma coisa muito doce, lembro do Ryder, do Marshall, do Chase... Acho que rolou um emparelhamento pavloviano ali”.

“Eu nunca tinha feito sexo virtual, mas na pandemia fiquei tarada. Dizem que tem a ver com a proximidade da morte. Eu passava as noites passeando pelas redes sociais procurando uns crushs on-line. Batia um papo, mandava nude, ligava a câmera, até de suruba eu participei. Foi ao mesmo tempo a época mais casta e mais safada da minha vida. Se eu tenho saudades? Nossa, nenhuma”.

“Que pandemia, o que?! Isso foi uma mentira que os chineses inventaram e os globalistas divulgaram pra tentar quebrar o capitalismo e frear o avanço da direita no mundo todo. O Trump, o Bolsonaro, o Orbán, o Erdogan, Salvini... A gente tava vencendo em todo lado! Aí veio essa fake-news de coronavírus, o Trump perdeu, o Bolsonaro caiu e agora o mundo taí essa porcaria. Homem de mão dada com homem, índio nessas reservas gigantes, empregada indo pra Disney. A universidade parece uma rodoviária. Eu sei do que eu tô falando porque eu peguei uma gripe muito forte na época e fui pro hospital. E me intubaram. Eu tenho certeza que não precisava me intubar, o meu sentimento é que era só uma gripe, mesmo, mas os médicos me enganaram. Não, não tenho formação na área de biológicas. Trabalho com TI. Mas eu me informo, né? Tô sempre lendo aí no Facebook, no Whatsapp. O meu sentimento é que não precisava me intubar. Era só uma gripezinha”.

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