Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Chupa, treva!

Esse grito está fermentando no fundo do meu gogó desde a noite aziaga de 2016

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Em “Veneno remédio – O futebol e o Brasil”, José Miguel Wisnik atenta para um dos encantos do esporte bretão: a assimetria nos resultados. Peguemos o basquete. Inventado sob encomenda, em 1896, por um professor canadense de educação física, foi desenhado para ser equilibrado, meritocrático, para que vença o melhor —e vence. É muito difícil um time ruim ganhar de um bom.

Por isso mesmo, segundo o Wisnik, a bola ao cesto vai mais alto, porém não tão fundo quanto a que passa entre os três paus. O basquete é menos semelhante à vida: injusta, assimétrica, sempre passível de uma falta mal marcada, uma canela redentora, um gol contra aos 44 do segundo tempo.

Tendo passado as últimas 8.975 horas acompanhando a apuração das eleições americanas, entendi finalmente a razão de os EUA nunca terem dado pelota pro futebol. Não é, como eu pensava, culpa da ética protestante e do espírito do capitalismo (citando outro mestre, menos sábio que o Wisnik, posto que nunca disputou uma bola entre a espuma do Atlântico e a areia escura de São Vicente). É o contrário: os americanos valorizam tanto a emoção do caos ludopédico que a concentram, a cada quatro anos, no principal esporte nacional: a pelada de várzea do colégio eleitoral.

Pois eis que, na prorrogação, de virada, como num carrinho do Viola, uma falta do Marcelinho Carioca, um rebote do Tupãzinho, deu Biden e Kamala. Ouço ressoar pelo cosmos a voz de um Galvão Bueno. Não, de um Osmar Santos: goooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooool da civilização! De viraaaaaaaada! De viraaaaaaada o iluminismo vence as treeeeeeevas, o fasciiiiiiismo, a mentiiiiiira, o raciiiiiismo, o machiiiiiismo, o bronzeamento artificiaaaaaaaal e o laquê no “comb-oooooover”! Chuuuuuuuupa Ku Klux Klan! Chuuuuuuuupa milíciaaaaa! Viiiiiiiiiiiiva Martin Luther King! Viiiiiiiiiiiiva Marieeeeeeeelle! Viiiiiiiiiva a arte! A ciência! O caráter! A bondade!

Ilustração
Adams Carvalho

Esses gritos estão fermentando no fundo do meu gogó desde a noite aziaga de 2016 em que vimos Darth Vader e a Estrela da Morte lançarem suas sombras para além de Tatooine, Hungria, Polônia e Brasil. Em 2018, nosotros, cucarachas, assistimos a outra volta do parafuso: um flanelinha desclassificado do trumpismo, apoiado pelos motoristas dos SUVs a quem prometeu ajudar na baliza —e, junto ao parça Guedes, dar uma olhada na charanga—, chegou a Brasília.

Sob as luzes da ribalta, por quase meia década, imbecis proclamam que a Terra é plana, que as vacinas causam autismo, que o mundo é dominado por um conluio entre o mercado financeiro, os artistas de Hollywood, os petistas e o partido democrata norte-americano, cujo objetivo é matar crianças e beber seu sangue. (Não estou inventando ou exagerando. Bote no Google "Qanon". Essa insânia acabou de eleger uma senadora nos EUA).

Foi por pouco, mas foi. Trump perdeu. Tem gente bem ruim no mundo, mas também existem os Obamas, os Chicos Mendes, o feminismo e a luta antirracista, que vez por outra conseguem atravessar as defesas do obscurantismo, chutar por cima das barreiras e balançar a rede. Vou passar dois meses gritando pela janela: chuuuuuuuupa, trevaaaaaaa! Treme, Bozolinooooooo!

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