Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

WhatsApp, ferramenta do demônio

Se usássemos tambores ou sinais de fumaça, nos entenderíamos melhor

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Neste ano, engolfado pelo conluio tenebroso entre confinamento e Bolsonaro, entrei em diversos grupos de zap cujo objetivo é defender e aprimorar a democracia. “Conversas progressistas”, “Esporte pela democracia”, “#estamosjuntos”, “Autores democratas”, “Escola antirracista”, “Corredores antifascistas” e por aí vai. Não houve um único grupo em que não chegássemos, em algum momento, numa batalha campal.

Engraçado (nem um pouco, na verdade) é a semelhança das brigas. Frases como “Gente, vamos respeitar a opinião alheia?”, “Discordar é uma coisa, debochar é outra!”, “Desculpa, não era esse o tom que eu quis dar”, “A gente já não tinha decidido isso, pessoal????!” e invariavelmente: “fulano saiu do grupo”, “sicrano saiu do grupo”, “beltrano saiu do grupo”.

Depois de participar da décima batalha virtual, comecei a desconfiar que o problema não era das pessoas, das causas, do desespero com o governo ou do estresse com a quarentena. A encrenca era a ferramenta. Quando penso, hoje, sobre criar um movimento coletivo via WhatsApp, a imagem que me vem à cabeça é a de servir um almoço, coletivamente, sobre uma esteira rolante.

Ilustração com estilo grafite mostra Jair Bolsonaro atrapalhado ao colocar uma máscara no rosto. No alto, a palavra urgente
Adams Carvalho/Folhapress

Às 14:32:28 o Daniel põe um garfo. A Joana chega às 14:32:35 e põe a faca, o Valter, entrando às 14:32:43, reclama: “Gente, tá o garfo num lugar e a faca três metros depois, não seria mais interessante botarmos um do lado do outro?”. “Desculpa, querido, mas você chegou agora, eu e a Joana estamos aqui tentando botar a mesa, se você tivesse chegado antes, poderia ajudar mais em vez de criticar”. Aí vem alguém com a salada, outro estende a toalha por cima, a carne fica ao lado da sobremesa. Oito da noite, um desavisado entra no grupo e sugere, sem saber o que rolou ali o dia todo: “pessoal, e se puséssemos a mesa?”.

Não é a mente vazia a oficina do demônio, é o WhatsApp. Dentro dele a conversa não se concatena, os raciocínios não fecham, as decisões invariavelmente ficam no ar. É uma ferramenta perfeita pra disseminar o caos, no bom e no mau sentido. O bom sentido é a bagunça dos grupos de amigos. Ninguém ali está tentando construir nada, só quer se divertir postando memes, gifs, vídeos engraçados. Qualquer um pode entrar a qualquer hora e em qualquer ponto da conversa e simplesmente sorrir com o que passa na esteira.

Já no lado maléfico da balbúrdia está a disseminação de fake news. Justamente pelo fato de as conversas não terem começo, nem meio nem fim, tudo chega entreouvido. Frases soltas. Informações desconexas. O Trump querendo que parassem a contagem dos votos nos estados onde estava na frente e poderia perder, ao mesmo tempo em que exigia a continuação da contagem onde poderia ganhar é o tipo de loucura que só faz sentido neste mundo do WhatsApp.

O fato de estarmos vinte e quatro horas por dia com a cara no celular, discutindo em 176 grupos, simultaneamente, também não colabora muito na concentração. Incêndio no Pantanal, legalização do aborto, mamadeira de piroca, eleição na Índia, violência policial e figurinhas da Hebe fazendo coraçãozinho de mão se misturam, sem muita hierarquia e em alta velocidade. É na tela plana que germinam as Terras planas. Duvido que, se estivéssemos todos em torno de uma mesa, olhos nos olhos, as pessoas teriam coragem de dizer metade dos absurdos que enviam por WhatsApp.

Acho até que, se em vez de celulares usássemos tambores ou sinais de fumaça, nos entenderíamos melhor. Mesmo porque deve ser bem difícil comunicar, com toques de atabaque ou uma fogueira, conceitos tais como “mamadeira de piroca”.

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