Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

O cambaio da rainha

Sem conflito, série vem ao encontro dos anseios de uma época conflagrada

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ilustração para a crônica do Antonio Prata; desenho mostra em tons de cinza a protagonista da série "O Gambito da Rainha"
ilustração para a crônica de Antonio Prata - Adams Carvalho

Finalmente assisti a “O Gambito da Rainha”, na Netflix. Sei que muitos já escreveram sobre, mas, se chego atrasado na bola, pelo menos chuto pra outro lado: não achei essa Coca-cola toda. Fiquei muito tempo pensando na razão de tanto sucesso pra uma série mediana e arrisco aqui a minha semiótica de botequim.

A televisão, como toda manifestação cultural, obviamente reflete a sua época. No caso da renascença das séries, a TV inclusive antecipou a sua época. Anti-heróis como Tony Soprano, Walter White ou Don Draper chegaram às telas mais de uma década antes de homens muito parecidos chegarem à Presidência.

A razão do sucesso dessas séries em que homens de meia-idade, frustrados, mandavam a moral às favas e tocavam o terror (seja com armas e drogas, seja com martínis e assédio) é a mesma que levou às eleições de Trump e Bolsonaro.

O livro “Homens Difíceis”, sobre os showrunners dessas e outras séries, revela que os próprios roteiristas eram homens de meia-idade, frustrados. Ao menos profissionalmente, pois não tinham espaço para criar as séries que gostariam e sentiam-se diminuídos escrevendo “Flipper” ou “Alf – o ETeimoso”.

(Pessoas saudáveis sublimam suas frustrações criando ou vivenciando obras de arte, outras encaminham suas neuroses para matar 180 mil brasileiros.)

Nos anos 00, houve um salto na qualidade do audiovisual, é evidente, mas os programas também funcionaram por ir ao encontro da frustração da classe média global, que viu seu poder aquisitivo e seu status social decair desde a crise do petróleo, em 1979, até os dias de hoje. Essa parcela da população queria vingança. Matar os desafetos. Ganhar dinheiro. Encher a cara no trabalho. Ir pra cama com quem desejasse. Ser politicamente incorreta. Tony, Walter e Don os representaram.

“O Gambito da Rainha”, neste momento de desesperança, exaustão, pessimismo, também vem ao encontro dos nossos anseios. É uma série sem conflito, numa época conflagrada. A menina é uma gênia. Ela aprende a jogar e ganha, ganha, ganha, ganha e acabou. Tá certo que começa com a morte da mãe, mas certa apatia tanto na atriz que faz a criança como em Anya Taylor-Joy —o réptil ruivo mais deslumbrante que já tocou numa peça de xadrez— nos passam uma sensação de que, da chegada ao orfanato em diante, nada de realmente ruim possa acontecer.

A menininha branca é encarada por uma garota negra, mais velha e rebelde. Você pensa: pronto, vai rolar um bullying, aí. A menina praticamente adota a Beth. A pequena Beth vai lavar os apagadores no porão. Dá de cara com um velho servente. Você pensa , pronto: vai rolar o abuso, aí. O véio a ensina a jogar xadrez. A criança se vicia em calmantes. E? Eles fazem com que ela alucine e jogue xadrez no teto. A adolescente é adotada por um casal cujo pai a rejeita. E? Ele vai comprar cigarros na esquina e nunca mais volta. A mãe se torna alcóolatra. E? Fica amiga da Beth e toca um piano que é uma beleza. A própria Beth flerta com o alcoolismo, mas a gente sente o tempo todo que aquilo não é de verdade. Os homens que cruzam seu caminho são gentis. Inclusive os russos que ela janta, um por um, piscando e fazendo biquinho.

“O Gambito da Rainha” é uma série bem mais ou menos —e é, talvez, das séries que mais me emocionaram em 2020. Escapismo da mesma categoria das pílulas alviverdes que a protagonista toma. Parece 2020 em negativo. Tudo o que pode dar errado não dá. Harmonia racial. Mulheres vencendo homens. Dependência química de mais de uma década superada sem suar. Até a Guerra Fria é resolvida pela heroína, amada pelos russos. Keanu Reeves, diria o meme do Mussum (que ano horrívis!): estamos torcendo pelo DEM, sentindo falta de reunião no trabalho e nos comovendo com má dramaturgia.

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