Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Antonio Prata

Logo mais a gente mergulha no mar

Uma coisa que a gente aprende é que a louça não se comove com o Drummond

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

As meninas cozinhariam a peixada e os meninos lavariam a louça. Este era o combinado para a ceia do Réveillon de 1997. Tínhamos 19, 20 anos, estávamos numa vila de pescadores escondida num entroncamento entre o mar, a mata, o Rio e São Paulo.

As meninas fizeram um caldeirão com os peixes que chegaram nas traineiras, no finzinho da tarde. Antes de dormir, nós, meninos, lavamos toda a louça —menos o panelão da peixada. Parecia uma empreitada muito radical depois de uma noite inteira de festa.

Lembro de ter tampado a panela, onde espinhas e rabos de peixe boiavam junto aos restos mortais de tomates e cebolas, dado uma garibada do lado de fora e ir dormir com sensação de missão 97% cumprida.

Mil novecentos e noventa e oito amanheceu esplendoroso, céu azul, sol, as ondas quebrando “veeeem! Veeeeem! Veeeeem!” e os tiês-sangue piando “vaaaai! Vaaaai! Vaaaai!”. Pareceu-nos que, diante daquele cenário, lavar a caçarola era uma ação absolutamente desprezível, quase vil. Tínhamos 19, 20 anos, como eu disse, só nos interessavam os caminhos que conduzissem “ao princípio do drama e da flora”, tudo mais era capitulação, mediocridade, acomodação.

Ilustração em tons de azul. Uma caixa boia na água. Dentro, com o personagem principal do filme A Vida Marinha com Steve Zissou
Adams Carvalho

Lindo, mas uma coisa que a gente aprende a duras penas é que a louça não se comove com versos do Drummond. Depois de horas na areia gritando “sim! ao eterno”, encontramos a casa sob o miasma mais gauche da vida: o “princípio do drama e da flora” já exercia seus poderes sobre os restos de 1997.

Estava na hora do almoço, iríamos fazer um churrasco e entre a gula e a responsabilidade, claro, ficamos com a gula. Eu e o Pepo pegamos o caldeirão, o levamos até um corredor fora da casa e não pensamos mais no assunto por dias e dias, ondas e ondas, tiês e tiês.

Na véspera de partir, enquanto fazíamos as malas e dávamos uma geral na casa, alguém se lembrou da poção mágica que, lá fora, fungos e bactérias vinham preparando, sob o sol dos trópicos, junto aos despojos de Netuno.

Alguém se recorda daqueles pântanos nebulosos que apareciam vez por outra em episódios do Scooby Doo? Pois foi o que encontramos ao levantar a tampa. Havia lagos, charques, areia movediça, raízes aéreas, cipós, chorões. Crocodilos dormitavam sobre as abóbodas esverdeadas do que outrora tinham sido cebolas.

Revoadas de morcegos vieram em nossa direção, junto a corvos, abutres, uma bruxa na vassoura e um futum de que jamais me esquecerei. Até hoje sofro de estresse-pós-traumático-olfativo. Só passar por uma feira pra começar a tremer, sentir a boca seca, a mão suada e ser tomado por um terror vago e preciso, de quem acordou babando no meio de uma aula do primeiro colegial e chamou a professora de vó.

Não havia como lavar o ecossistema, da mesma forma como não se “lava” Tchernóbil ou Dresden após os bombardeios aliados. Embrulhei o microcosmo em meia dúzia de sacos de 100 litros e o levei até o limite da cidade, onde ficava a caçamba de lixo. (Não sei exatamente por que coube a mim levar a bomba bacteriológica, mas os heróis estão aí pra isso. Ah, é verdade, eu fui um dos que não lavou. Olhaí o homem-branco-hétero-cis querendo aplauso por não fazer mais do que a obrigação. Parem, por favor, isto é outra crônica).

Até novembro ainda pensávamos que sairíamos de 2020 para outro ano, mas 2020 seguirá fedendo sobre o fogão da cozinha ao longo de 2021. Não dá pra levar pra fora da casa. A gente vai ter que lavar essa louça, pessoal. (Mesmo que não tenhamos sido nós os responsáveis pela podridão). Juntemos os adultos da sala e mãos à obra. Uma hora, logo mais, a gente mergulha no mar.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.