Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Carta de demissão

Depois de treze bilhões de anos na mesma função, estou cansado

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Primeiramente, gostaria de agradecer a todos. Dizer, do fundo do coração, que vocês são a minha maior obra, amor e orgulho. Olhando para trás, nem acredito. Parecia impossível, mas eu fui lá e fiz. Do nada. De antes do nada, na verdade, uma vez que o nada já pressupõe algo contrapondo-se à sua “nadidade”. (Nem sei por que pus aspas: o que é um neologismo para quem inventou o avestruz?). Pá! Big Bang! Pá! Tempo e espaço! Universo! Natureza! Vocês!

Hoje, quando vocês querem comunicar que construíram algo do zero, costumam dizer: “quando eu cheguei, era só mato”. Nem imaginam o trabalho que tive para chegar no mato. Foram treze bilhões de anos pra conseguir um broto. Só pra criar o carbono foi um esforço tremendo. Imagina, pensar num único elemento que seja a base de toda a vida? Pra isso tive que criar fornos gigantes. Ah, as estrelas!

Brincando, brincando, põe aí mais uns bilhões de anos ralando. Problema atrás de problema.

Ilustração de uma caixa de papelão com um "t ™" estampado nela. Há uma edição do livro Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis, um abacaxi, uma cafeteira italiana, fones de ouvido, um coçador de costas com uma mãozinha na extremidade e papeis dentro da caixa
Adams Carvalho

Então, uns cinco bilhões de anos atrás eu olhei pra Terra e disse: taí, gostei. Gastei um tempo polindo, lixando, envernizando, me estabeleci e construí toda uma carreira reconhecida, devo dizer, sem humildade, por mais de uma religião. (Um agradecimento especial ao judaísmo, que primeiro acreditou em mim; ao cristianismo, que tanto investiu e divulgou o trabalho da família, e ao islamismo, ainda que fake news de invejosos tentem propagar o absurdo de que Javé e Alá não são a mesma entidade).

Tenho certeza, olhando pra trás, de que fiz um trabalho importante. Oceano, atmosfera, borboleta, ser humano. Pitágoras. Pi. Bhaskara. Orgulho-me demais de ter olhado praqueles oceanos mortos lá atrás e pensado: “Quer saber? Vou meter aí uns coacervados!” Daí pras amebas, organismos multicelulares, os dinossauros e vocês, foi um pulo. Duplo twist carpado.

Nos últimos tempos, contudo, tenho me sentido cansado. Treze bilhões de anos na mesma função, é puxado. Resolvi assumir algo que já estava latente em mim, mas que eu ainda não conseguia elaborar: eu curto criar, não gerenciar. Admito, aliás, sem ressentimento, que fui mais competente na criação do que na manutenção.

Eu criei o mundo porque gosto da emoção de tirar um projeto do zero. Mas aí, depois de seis dias, estacionei num cargo de gerência e nunca mais saí. Sinto que meu ciclo, por aqui, se completou.

Ainda não sei a que vou me dedicar. Talvez criar outro universo do zero. Talvez um projeto mais simples. Pegar um planetinha charmoso qualquer em Alfa Centauro e fazer a vida começar do zero. Algo pro lado dos polvos. Ou dos fungos. Ou polvos com fungos. Tentáculos e micélio.

Talvez, quem sabe, eu não faça nada por um ou dois milhões de anos. Aprendi a meditar recentemente e esvaziar a cabeça dos pensamentos me ajudou bastante nos últimos cinco milênios. Ajudou, inclusive, com meu problema de bipolaridade. Vocês devem ter notado. Idade Média, Renascença. Einstein, Hitler. Beatles, Vietnã. Samba, milícia. Pensando bem, não ajudou tanto. Preciso parar. Pensar e cuidar de mim.

Já tenho feito isso, aliás. Não é segredo para ninguém que me ausentei de 2013 pra cá. Lamento, mas tem um momento na vida em que a gente precisa pensar só em si. Não se desesperem. As coisas vão piorar bem depressa, o sofrimento será curto e logo vocês voltarão ao pó de que vieram. Adeus (sem trocadilho!).

Deus.

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