Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

O barquinho vai

O bagageiro de teto parecia um delírio do capitalismo desenfreado até eu ter filhos

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Durante décadas (mais décadas do que eu gostaria de confessar) dirigi pelas ruas da cidade encafifado com um mistério: por que cargas d’água tantas pessoas tinham barquinhos presos em cima dos carros?

Ainda mais misteriosa do que a onipresença dos barquinhos nos capôs era a ausência dos mesmos em qualquer praia, rio ou lago. Seria um modelo muito específico de caiaque usado apenas em raras corredeiras às quais eu não tinha acesso? Seria um modelo para um desses esportes olímpicos de inverno que brasileiros ricos talvez praticassem nas férias em Aspen, tipo um bobsled ou curling? Ou um bote de segurança para uso em caso de enchente?

Foi minha mulher, com sua infinita superioridade intelectual, quem me explicou, há menos anos do que eu gostaria de confessar: “Não é um barquinho, animal! É um bagageiro de teto!”.

Fez-se a luz; mas logo voltei à escuridão. Por que diabos tanta gente precisaria de um bagageiro de teto? Se o cidadão quer levar uma quantidade de coisas que nem cabe num carro, não seria melhor chamar um carreto? Bagageiro de teto me soou como um desses delírios do capitalismo desenfreado, tipo borda de pizza recheada, o SUV Hummer, as coxas da Gracyanne.

Ilustração de um carro azul, com um bagageiro no teto. Ao fundo, montanhas verdes ebranquiçadas
Folhapress

Eu tinha trinta anos, confesso, quando descobri a existência do bagageiro de teto — trinta anos e nenhum filho. Diz o ditado que os bebês já nascem com uma baguete embaixo do braço. Levado ao pé da letra, o ditado afirma que o pai da criança não é você, e sim o Olivier Anquier.

Encarado de forma mais abrangente, contudo, o que o ditado sugere é que um filho leva a gente a correr atrás do sustento. O que o ditado não conta é que gastamos tudo o que ganhamos na correria em coisas pro filho. Roupas, mamadeiras, banheirinhas, boias, andadores, umidificador de ar, cavalos de pau, infinitos dinossauros, um sistema solar inflável —tantas coisas que um dia você vai viajar e vê que não cabe tudo no porta-malas.

Foi na quarentena que resolvemos dar este mergulho de cabeça no zeitgeist burguês e comprar um “barquinho”. Pesquisamos durante dias e antes do Réveillon compramos o maior barquinho de todos, capaz de levar 600 litros de tralhas pelas estradas deste Brasil.

Passamos horas (talvez dias, perdi a noção do tempo) na garagem do prédio, com uma escada, uma cadeira da cozinha e uma caixa de ferramentas, instalando o barquinho. Enchemos o barquinho com brinquedos das crianças, compras para dez dias isolados no meio do mato, roupas, um serrote, uma pá, um tapete, uma bicicletinha infantil, uma leitoa congelada.

Ligamos o carro —e tocou o interfone. Joaquim, nosso querido zelador, avisou, com o devido zelo, que carro com barquinho não passava pela porta da garagem.

Foram mais umas quatro horas (ou quatro dias?) para tirar tudo do barquinho, desmontar o barquinho, rearranjar toda a tralha dentro do carro. (Cogitamos deixar pra trás uma das crianças para caber a leitoa, mas tememos um processo da Vara de Família e deixamos a leitoa). Desde janeiro, o barquinho está no hall do elevador.

Há uma semana, eu e meu amigo João trocamos mensagens sobre o cargueiro entalado no Canal de Suez. Há algo de essencialmente masculino naquela barbeiragem. Uma irresponsabilidade homersimpsoniana, um otimismo papaipigueano: “tchá comigo! Eu sei o que eu tô fazendo! Vai dar certo!”.

Homer, Papai Pig, capitão do navio: #tamojunto. Mas por pouco tempo.

VENDO BAGAGEIRO DE TETO. NUNCA USADO. TRATAR NO VENDO
BARQUINHO@GMAIL.COM.

É sério. Acabei de fazer o email. Obrigado.

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