Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

O 'aerosol' tá 'mutado'

Encurralado digital num corredor polonês de desconforto no Zoom

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Ilustração para coluna de Antonio Prata, 25.abr.21
Adams Carvalho

Assim como em casa de enforcado não se fala sobre corda, é pouco recomendável durante um terremoto reclamar de uma enxaqueca. No entanto (e sempre há um "no entanto" nesta vida —acho até que dá um samba: "No entanto, oooô/ Sempre há um 'no entanto' nesta vida, oooô") não é porque as placas tectônicas estão copulando animalescamente sob seus pés que a sua cabeça para de latejar. Pelo contrário, imagino que a tremedeira, o pânico e o teto caindo devam ser péssimos pra quem, com o chão parado, já estava vendo estrelinhas.

Pois a hecatombe político-sanitária que estamos vivendo também traz, escondidas na poeira do desabamento amplo, geral e irrestrito, as suas enxaquecas. Sem desmerecer os soterrados, convém falar sobre elas: já que as crônicas não funcionam como impeachment nem como vacina, quem sabe ao menos sirvam de aspirina?

"Rogério, não tamos te ouvindo". "Rogério, tá mutado". "O microfoninho, Rogério, embaixo, na esquerda, clica ali". "Tão me ouvindo agora?". "Agora sim!". Risadinhas gerais contemporizadoras.

Toda vez que me vejo nesse impasse do Zoom (ou seja, diariamente), sinto saudades profundas dos papos sobre o tempo, no elevador. A lembrança do Walter, porteiro, me zoando nas derrotas do Corinthians me atinge como a recordação de uma taça de champanhe num piquenique da Belle Époque devia trespassar um soldado europeu enlameado nas trincheiras. Saudades do Walter. Ódio do neologismo "mutado". Ódio de quem não "desmutou". Sobretudo quando este sou eu.

Pior que o "mutado" é o "aeroSSol". Até o surgimento do coronavírus todo mundo pronunciava "aerosol", com um esse só. Passamos décadas debatendo os perigos do "aerosol", do clorofluorcarbono do "aerosol", do buraco na camada de ozônio causado pelo "aerosol" . Aí, lá por março do ano passado, do nada, todo mundo começou a falar do risco da disseminação do vírus por "aeroSSol".

Quando decidiram mudar a pronúncia? Quem decidiu? Custava anunciar no jornal? Pequenininho, no pé da página, igual começo de horário de verão: "A partir da zero-hora de hoje, a pronúncia de "aerosol" muda para "aerossol". Acre, Amapá e Roraima seguem falando "aerosol".

Voltando ao Zoom —estamos sempre voltando ao Zoom, na quarentena—, pior que o começo "mutado" é o fim da reunião, quando todo mundo vai desligando e sobra você e um desconhecido do RH, procurando aflitos o botão vermelho. É uma situação análoga àquela da distante vida em "live-action", quando nos despedíamos de alguém e acabávamos indo pro mesmo lado. Era preciso improvisar rapidamente uma conversinha, geralmente requentando algo irrisório de que tínhamos falado minutos antes, como se para nos defender do monstro do constrangimento golpeássemos o silêncio com a primeira frase ao nosso alcance.

"Cê disse que passou o Réveillon em Atibaia. Eu tenho uma tia que alugou uma casa lá, uma vez". "Uma tia?". Na verdade era mulher do meu tio. Aliás, eles separaram". "Sério?! Eu também tenho um tio que separou!". "Em Atibaia?". "Não, Avaré". "Ah".

O rabicho de Zoom é ainda mais difícil do que o papinho forçado no pós-tchau, porque os encurralados digitais sabem que em segundos o outro desaparecerá, de modo que se cria o consenso mudo (ou mutado?) de que não é pra puxar papo. Nada pode ser feito além de encontrar rápido o botão que termina a chamada, enquanto atravessamos aquele corredor polonês de desconforto.

Um corredor polonês de desconforto: eis o que sentem os que, como eu, estão bem na pandemia. Tá puxado. "No entanto, oooô/ Sempre há um num entanto nesta vida, oooô".

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