Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

A vida em grande angular

O molar que me aflige ultimamente é o fundo borrado do Zoom

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Há problemas maiores, sempre há. Considerando que daqui a uns bilhões de anos o Sol vai se transformar numa gigante vermelha, engolindo todos os planetas do seu sistema, o lado claro e o lado escuro da Lua, os anéis de Saturno, os camundongos, as orquídeas e as baleias azuis, a própria morte não chega a ser uma dor de dente na ordem geral das coisas –e no entanto doem, os dentes.

O molar que me aflige ultimamente é o fundo borrado do Zoom. Com a quarentena, perdemos a visão panorâmica sobre as pessoas, mas ganhamos como prêmio de consolação detalhes que, em outras circunstâncias, jamais veríamos. De março a dezembro do ano passado eu tive muita dificuldade de me concentrar em lives e reuniões: estava focado demais nos cabides, candelabros, quadros e cumbucas do pessoal.

Durante aqueles primeiros meses de solitária, crianças passando no fundo, quadros feios ou bonitos, plantas, pesinhos e elásticos de exercício foram sorvidos como a água de um cacto por um caubói sedento, num velho bangue-bangue.

Ilustração para coluna de Antonio Prata, edição de 16.mai.2021
Adams Carvalho

O Boni tem vários livros sobre centros médicos ao lado de livros sobre culinária. O Ciro Gomes tinha uns halteres vermelhos em cima da cama. O Porchat tinha uma mulher pelada passando atrás. (Eu não vi, Porchat, todo respeito à sua senhoura, ouvi você contando numa outra live, aliás, em que tinha atrás de si uma pintura comprada na Índia, se não me engano).

Pensei em lançar um livro de fotografia só com estantes. Ou uma conta no Instagram. A estante da sala do Caetano Veloso. A estante da sala da Angela Merkel. A estante da sala do Faustão. Podia ser um tour, também, caríssimo, pós-Covid. Tipo um cruzeiro. A pessoa paga uma fortuna e pode passar uma tarde na casa de um famoso, sem ele, fuxicando todas as prateleiras, caixas e gavetas.

Uma viseira largada sobre uma poltrona mudou a minha visão sobre um conhecido. Tinha-o como um cara austero, serião. Em que situação ele usaria a viseira? Seria de forma irônica, como, digamos, um fã de Wes Anderson calçaria um par de Kichutes? Ou usaria a sério: “é bom, protege o rosto do sol sem esquentar a cabeça”. “Mas é uma viseira, cazzo! Nenhum ser humano usa uma viseira a sério desde 1987! Você por acaso usa uma carteira emborrachada da Company e um moletom da Pakalolo?!”, eu perguntaria, sem qualquer censura estética, mas morto de curiosidade.

Trabalho há quase um ano com 11 pessoas que nunca vi senão no 4 x 4 do computador. Não sei se o Fernando usa All Star ou sapatênis. Se a Renata tá de coturno ou Melissinha. Difícil ler uma pessoa sem saber onde ela pisa. O Zoom é um cercadinho em que o cachorro não sabe se o rabo do outro tá abanando. A moldura da casa era o que tínhamos, senão como termômetro, ao menos como um vislumbre de quem estava à nossa frente.

Aí vem esse borradinho. Você só vê a pessoa: o entorno, geralmente incluindo partes das orelhas e do cabelo, parece que foi untado com manteiga para assar pão de queijo. Mano, libera essa moldura. Ao vivo a gente tem lordose, escoliose, remela, cofrinho, alface no dente, cecê. O Zoom já nos protege de 99,99% desses germes informativos (pra usar a porcentagem do álcool 70%). Precisa, além de tudo, esconder a toalha do Vasco? A raquetinha de matar mosquito? A Fanta dois litros pela metade? Vamos nos ajudar, pessoal. Sob o desgoverno da familícia, ainda tem chão até que o fim da pandemia nos permita voltar à vida em grande angular.

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