Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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'Schadenfreude' explica

A pindaíba nacional é tão ampla, geral e irrestrita que nosso maior cronista hoje é estrangeiro

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A pindaíba nacional é tão ampla, geral e irrestrita que, atualmente, o maior cronista brasileiro é um estrangeiro. Humberto Werneck, um dos maiores conhecedores do gênero, costuma dizer que a crônica não nasceu no Brasil, mas, como o futebol, aqui melhor se aclimatou. Tal qual no ludopédio, nossos craques da escrita vira-lata cresceram na várzea: no terreno baldio entre o rio da literatura e a terra firme do jornalismo.

Brasileiros, somos especialistas na ambiguidade, no negaceio, no lusco-fusco. A dificuldade que temos em botar o preto no branco, aceitar o limite, cumprir o prazo, dizer sim, dizer não, deu na solidez gelatinosa das nossas instituições, mas também nas pernas tortas do Garrincha e na pena sinuosa do Rubem Braga. Garrincha driblava seus joões (como chamava os defensores), Braga driblava o leitor. Fingia que ia pra um lado, saía pelo outro. Apontava para uma espiga de milho e acertava no ângulo da condição humana.

Ilustração da coluna de Antonio Prata, edição do dia 23.mai.2021
Ilustração da coluna de Antonio Prata, edição do dia 23.mai.2021 - Adams Carvalho

Pois, com uma desolação “seteaúnica” eu devo admitir que, hoje, o maior neste gênero tão brasileiro é um português: Ricardo Araújo Pereira. Já há muito tempo que nutro pelo meu colega de domingos, ali na Ilustrada, a mais alta forma de admiração: raiva. Ele é melhor do que eu em tudo. É um gênio na crônica. É um gênio no roteiro —seu grupo de humor, Gato Fedorento, é uma grande inspiração do Porta dos Fundos. RAP, como é chamado em Portugal, é ainda alto, bonito, rico —dessas pessoas tão superiores que a gente nem fica com ciúmes quando percebe a nossa mulher babando, sabe?

Foi com imensa alegria, portanto, que, dias atrás, descobri um defeito no Ricardo. É um defeito pequeno, reconheço, mas também pequeno é o calcanhar e nem por isso Aquiles se safou. Faz uma semana que eu recebo do RAP, inúmeras vezes por dia, uma resposta automática a e-mails que não lhe enviei: “Estou ausente e com acesso limitado ao correio electrónico. A resposta pode tardar. Obrigado”.

Trata-se de uma farpa no calcanhar: mas vai que infecciona? Vai que mais gente, além de mim, vem recebendo estas misteriosas mensagens? Vai que eu encontro tal gente e noto certa má vontade com o Ricardo? Vai que alguém diz que já avisou o RAP do problema e ele ainda não solucionou? Daí pras acusações de egoísmo, arrogância, desumanidade e boatos de que se tratava de um time de 12 pessoas ghost-writing pro Ricardo, enquanto um modelo/ator o representava publicamente, é um passo. Pro cancelamento, são dois.

Imagino o Porta dos Fundos publicando um comunicado afirmando que, frente às recentes denúncias, removem o Gato Fedorento da sua lista de inspirações, da mesma forma que vi, depois do documentário sobre o Michael Jackson, pessoas saírem da pista às primeiras notas de "Beat it". “Sempre desconfiei”, eu diria. Tanta perfeição não cheirava bem.

Minha "Schadenfreude", porém, acabou assim que me ocorreu a seguinte hipótese: e se não for um problema na caixa de entrada do meu colega, mas uma piada? Uma gag digital. É bem o tipo de ironia do Ricardo, um e-mail que chega o dia todo afirmando que seu autor está longe do e-mail. Imagino-o apertando “send” e rindo, lá na ilha caribenha onde ele certamente vive, tomando piña colada com seu harém.

É, não tem jeito. Perdemos o futebol, perdemos a crônica —alguém aí pode checar se nossos músicos passam bem? Precisam de alguma ajuda? Do jeito que o país desanda, não custa a gente se prevenir.

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