Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Tresa, quatra, cinca

Ontem de noite me dei conta de um bug linguístico pouco discutido: número só muda o gênero até o dois

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Ontem de noite, vivenciando uma potente imersão no pujante polo de produção intelectual chamado box do chuveiro, me dei conta de um bug linguístico pouco discutido: número só muda o gênero até o dois. Um, uma. Dois, duas. Três, tresa? Quatro, quatra? Cinca? Seisa? Seta? Oita? Nova? Nada.

Por alguma razão para além dos estreitos limites do meu blindex intelectual, uma laranja e um limão merecem ser tratados no feminino e no masculino, mas se trouxerem pra roda família e amigos, têm de se contentar com o genérico masculino. Por que será que o povo, este "inventa-línguas", acha importante tratar duas rebimbocas da parafuseta como moças e vinte e sete na indefinição? (Salvai-me, Sérgio Rodrigues!).

Ilustração para a coluna do Antonio Prata
Adams Carvalho

Tá, é verdade. Num país em que falta comida, democracia, justiça, caráter e tantos outros itens de primeira necessidade, a escassez mais grave certamente não é a de palavras. Mas é aquele negócio: mesmo numa guerra, tendo um tempinho, convém escovar os dentes. De modo que seguirei aqui tentando adubar a nossa querida flor do Lácio.

Neste país em guerra me vem à cabeça um minion desvairado postando "Foice de São Paulo quer emascular nossos numerais! Começa desvirilizando o três, capando o quatro e quando vai ver tão obrigando crianças de bem a se transformarem em indígenas-quilombolas-ribeirinhas-transexuais-com-dinheiro-da-Lei-Rouanet! #FORATRESA, #NOSSABANDEIRAJAMAISTERÁQUATRAPONTAS!

Também consigo ver, no sentido inverso, a aurora de um movimento pró gênero numeral. Abaixo-assinados pela mudança do título da peça do Tchekhov para "As tresa irmãs", a exigência de rebatizarmos o disco do Legião como "As quatra estaçãs". E se a extrema direita ficar muito irada, o pessoal da guerrilha léxica pode se defender dizendo que a revolta é apenas a segunda reação natural n’ "as cinca fases do luto". Ou da luta?

Já me vejo acusado de fazer falsa equivalência entre a turma do "todes" e a milícia fascista do "mito". Não estou. O segundo grupo é nefasto e perigoso, o primeiro é só um pouco ridículo. "Ah, que que um homem branco, hétero e cis tem que meter o bedelho em lutas de mulheres, gays, trans e não binários?".

Bem, como um operário do humor e torcendo pelo sucesso destas lutas, sinto que posso colaborar com minha humilde expertise. Considerando que numa democracia o único caminho legítimo para a mudança é através da persuasão da maioria, talvez tenha alguma serventia não soar risível entrando no ringue.

Cáspita. O assunto era outro e era leve. O Brasil é uma mesa de sinuca empenada, todas as bolas rolam pra mesma caçapa. Meu objetivo era passar da criação do tresa e quatra (etc) pra importância da invenção de um contrário de ambos —o "nenhumbos"—, finalizando com o "uns", a palavra mais contraditória de toda a língua portuguesa. (R.I.P. crônica desconhecida, mais uma vítima do desgoverno bozolino).

Recalculando a rota feito um Waze e seguindo pelo desvio: o próprio desgoverno parece-me um desdobramento natural do "uns". Se o um pode ser mais de um sem perder sua unicidade, toda a esculhambação é possível.

Se bem que em Portugal também se fala "uns" e eles tão super bem. Esquerda e direita se uniram e garantiram anos e anos de tranquilidade. Era um governo dos "uns". Por isso mesmo apelidaram-no carinhosamente de "geringonça". Agora deu ruim, não necessariamente por culpa de "nenhumbos" os lados. E sem saber como terminar, assumindo a crônica circular, amarro tudo com palíndromos da Marina Wisnik: "Muro, rever o rumo", "lá vou eu em meu eu oval", "ramo no mar".

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