Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Descrição de chapéu twitter

Sério mesmo, Elon?

Não é a liberdade de expressão quem está correndo o maior risco, mas a democracia e o estado de direito

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Elon Musk comprou o Twitter, diz ele, por temer o cerceamento à liberdade de expressão. O Twitter, meus amigos? Aquela rinha da trollagem em que vale dedo no olho, chute no saco e dentada na orelha? A ferramenta através da qual a família Bolsonaro corrói diariamente a democracia, ri da tortura, propaga mentiras sobre a pandemia, ameaça jornalistas, ativistas, cientistas, artistas e minorias em geral? Quem sabe o próximo passo do bilionário sul-africano seja comprar o Saara para proteger a areia?

Poucas discussões estão mais mal colocadas, hoje, do que esta sobre a liberdade de expressão. Quando temos bilhões de dólares e a ciência mais avançada (da matemática à psicologia) criando algoritmos que privilegiam, incentivam e propagam em escala global as opiniões mais extravagantes, chocantes e violentas; quando o resultado deste comércio desregulado de ideias é o esgarçamento do tecido social, o afunilamento do espaço público, a polarização política, as guerras culturais, o crescimento vertiginoso da depressão, ansiedade e suicídio entre jovens; quando esse sambalelê civilizacional põe a democracia em risco e se fala em Guerra Civil, nos EUA, e golpe militar, no Brasil, simplesmente defender a liberdade de expressão como um princípio absoluto e pronto, acabou-se, é meter a cabeça num buraco para não ver o que se passa.

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de São Paulo no dia 01 de Maio de 2022, mostra o desenho de um pássaro, símbolo do aplicativo Twitter, soltando uma gota de fezes branca dentro de um copo americano posicionado ao lado de outros dois copos também contendo um líquido branco
Adams Carvalho

É preciso que os autoproclamados liberais mundo afora olhem pela janela (ou mesmo pro celular) e constatem que levantar a bandeira da Primeira Emenda à Constituição Americana, dos enciclopedistas, dos contratualistas, de Bentham, Stuart Mill e outros que pensaram sobre uma arena pública radicalmente diferente da nossa não dá conta do que está acontecendo. É como tentar tirar um parafuso Philips com uma faca de cozinha: você espana o parafuso (confunde os contornos da questão), não o remove (o problema segue inabalado) e ainda destrói a faca (corrompe os autores).

Qual a solução? Mudar os algoritmos? As plataformas melhorarem seus filtros e regras de conduta? Criar-se uma espécie de constituição global para as redes sociais? Não tenho ideia, mas talvez o primeiro passo seja tirar os antolhos da "liberdade de expressão über alles!" e encarar o problema. O mundo está doente. Uma das causas da doença é a transformação da opinião em commodity e a aplicação da lei da oferta e da procura ao campo das ideias, o que faz com que quebrar a placa com o nome da vereadora assassinada eleja um deputado, mas propostas sólidas sobre educação e saúde pública, não.

A distopia das redes sociais nos trouxe para um "freak-show" do século 19, um circo de horrores. Estamos promovendo à fama e levando ao poder a Mulher Barbada, o Homem Elefante, a cabra de duas cabeças, a multidão goza vendo urso "dançar" sobre uma chapa incandescente. O que há de mais próximo deste antigoverno que brotou das redes e joga para elas não é o liberalismo, o conservadorismo nem sequer o fascismo, é a Farra do Boi.

Não é a liberdade de expressão, hoje, quem está correndo o maior risco, como acreditam Elon Musk e tantos outros, mas a democracia, o estado de direito, a declaração universal dos direitos humanos —conceitos que, convenhamos, jamais estiveram, nem de longe, assegurados a todos.

Daniel Silveira, livre pelo indulto presidencial para incitar a multidão contra um ministro do STF e tombar, mais um pouquinho, as nossas cambaleantes instituições, ri da nossa cara posando para uma foto com a placa quebrada da Marielle, emoldurada pelo cúmplice Rodrigo Amorim —um souvenir macabro do lamaçal de onde surgiram.

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