Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Sonhei com um veleiro

Depois de me mudar, quase entrei em guerra com um vizinho

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Nesta semana (emoldurada por esta década nefasta, pendurada na parede deste ano desesperador) quase entrei em guerra com um vizinho. Acontece que mudei para uma casa linda. Quintal, mexeriqueira, pitangueira, flores. Dormi a primeira noite com o cheiro das camélias entrando pela janela e sonhei com um mar azul, singrado por um barquinho de pescador, desses de tela naif em feirinha hippie, que você aluga pelo litoral do Brasil para comer lula à dorê com os pés na areia de praias quase desertas.

Uns chamam de baleeira, o que nunca entendi direito: o barquinho é pequeno, daria para pescar no máximo um tubarão. O nome mais popular, contudo, é toc-toc, por causa do barulho.

Barquinho de papel ao lado de um grande prego entortado em forma de serpente marinha
Adams Carvalho

Acordei sorrindo no quarto novo, o toc-toc-toc-toc-toc-toc ainda ressoando nos meus ouvidos, mas o sorriso foi sumindo assim que o barulho, eu percebia, não. Abri a janela: na casa dos fundos, no fim do meu quintal, próximo a umas caixas-d’água, havia um motor infernal, que não me abandonou nem naquela manhã, nem naquela tarde, nem naquela noite, nem nos dias seguintes.

"A notícia boa", diria Deus, "é que você vai morar num mini Éden. A ruim é que no seu Édenzinho vai ter, noite e dia, uma Brasília a álcool esquentando ad eternum".

Com o auxílio do Google Maps, tentei localizar o número certo na rua de trás. Enquanto pareava a flechinha azul sobre a minha casa com a bolinha azul da minha geolocalização, lembrei da piada do macaco.

O cara tá numa estrada de terra. De noite. Chove. Fura um pneu. Ele abre o porta-malas e descobre que não tem macaco. Avista, no alto de um morro, uma casinha com a luz acesa. Subindo a piramba, sem guarda-chuva, metendo os pés em poças e cocôs de vaca, ele pensa: só falta eu chegar lá e o dono da casa não ter macaco. Uns metros adiante –já se arranhou num arame farpado e deu joelhada num cupinzeiro: pior, só falta eu chegar lá e o mala não querer me emprestar o macaco.

Encharcado, com frio, já antevendo uma pneumonia, ele chafurda mais e mais no pessimismo: o cretino vai falar "tenho macaco, sim, mas não quero que molhe". Ou: "tenho, mas é meu, não empresto".

Quando finalmente chega, bate na porta e ela se abre, grita pro dono da casa: "sabe o que você faz com esse macaco?! Enfia no rabo!". (A piada fica mais engraçada substituindo "rabo" por seu sinônimo de duas letras, mas em nome do decoro —ainda mais escrevendo num jornal cujo slogan já foi "De rabo preso com o leitor"— vamos na versão família).

Embora de dia, caminhando seco e pela calçada, eu ia em direção ao vizinho minhocando como o neurótico da piada. O vizinho vai dizer que a lei do Psiu o permite fazer barulho até as 22h. Vai dizer que é juiz, desembargador, delegado, "adevogado". Vai defender as liberdades do cidadão de bem contra o "comunismo silenciador". Ele deve ter porte de arma, vai dar tiros na minha mexeriqueira e jogar carne com chumbinho pro meu cachorro —felizmente, lembrei, subitamente aliviado, que não tenho cachorro.

Toquei a campainha. O vizinho não estava. Expliquei a questão para funcionária que me atendeu, mostrei um vídeo de dentro do quarto dos meus filhos e deixei o número do meu celular. Naquela mesma noite, ele (Marcos) enviou uma mensagem que me deixou atônito, pelo descolamento brutal em relação à realidade brasileira.

"Antonio, desculpe, sinceramente. Tenho um poço e ali está a bomba. Vou fazer uma proteção que a envolva. Peço apenas que tenha paciência até eu viabilizar a obrinha. Abs". Não deu nem dois dias e o barulho sumiu, trazendo-me de volta um fiapo de esperança no futuro da nação.

Esta noite, sonhei com um veleiro.

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