Atila Iamarino

Doutor em ciências pela USP, fez pesquisa na Universidade de Yale. É divulgador científico no YouTube em seu canal pessoal e no Nerdologia

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Atila Iamarino

Brasil: o caldeirão da Covid

Ausência do Estado, falsos tratamentos e falta de campanhas de conscientização são alguns dos elementos desse desastre

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Em março de 2021 parece que estamos de volta ao começo de 2020. Com a diferença de que agora registramos em 3 horas mais mortes do que em todo o mês de março de 2020.

A variante de preocupação P.1, uma nova linhagem do Sars-2 que criamos aqui no Brasil, é um ingrediente fundamental dessa calamidade. Dois grandes estudos ajudaram a entender como ela surgiu, um coordenado no Brasil pelo Instituto de Medicina Tropical (IMT) da USP e outro pela Fiocruz. E o que reconstroem é muito preocupante. Ambos analisam os genomas do Sars-2 no Amazonas do começo da pandemia a janeiro de 2021. Isso inclui o período entre maio e setembro em que a doença parecia contida pela imunidade de curados, já que estudos sorológicos mostraram que mais da metade das pessoas haviam tido Covid na região e o distanciamento social foi cada vez mais relaxado, mas os casos continuavam baixos. E o período de novembro de 2020, quando os casos começaram a aumentar subitamente até chegarmos ao colapso do sistema de saúde em janeiro de 2021.

O estudo coordenado pelo IMT estimou que alguém infectado pela P.1 tem de 10% a 80% mais chances de morrer de Covid. E os dois grupos encontraram mais vírus em amostras de pessoas com Covid causada pela P.1, principalmente entre quem tem 18 e 59 anos, segundo o grupo da Fiocruz. Não se sabe se isso quer dizer que as pessoas com P.1 produzem mais vírus por dia ou se produzem a mesma quantidade de vírus por mais dias. Ambas condições tornaram a P.1 mais detectável nos testes e aumentariam a chance de transmissão do vírus.

A maior transmissão combinada com a capacidade de reinfectar curados da doença e a possibilidade de casos mais graves gerou um resultado explosivo. Os dois estudos estimam que a linhagem P.1 tenha surgido em novembro. Ou seja, em uma região onde a Covid estava sob aparente controle, em dois meses a linhagem P.1 conseguiu se espalhar a ponto de deixar mesmo pacientes que não tinham Covid sem oxigênio em Manaus. De acordo com o grupo da Fiocruz, a P.1 foi transmitida como o Sars-2 se espalhou no começo de 2020, antes das medidas de restrição, quando uma pessoa infectada transmitia o vírus para 2,6 outras em média. Como se não houvesse nada para barrá-la. E o estudo do IMT ajuda a entender como: estimam que mais da metade de quem já se curou do Sars-2 comum poderia ser infectado pela P.1.

Isso explicaria como um vírus que estava relativamente controlado de repente ganhou tanta capacidade de espalhar como se não houvesse pessoas imunes ao vírus, apesar do alto número de curados na região. Eis a receita brasileira do desastre. Em um caldeirão de desigualdades e falta de Estado, misture "curados" e vulneráveis. Tempere com bastante tratamento precoce, que não funciona, mas dá a falsa sensação de segurança. Remova o distanciamento social. Remova ministros da Saúde algumas vezes. Negligencie campanhas de conscientização. Deixe fermentar por meses sob negligência. E voilà. Você tem uma variante monstruosa e condições sociais ideais para ela se espalhar até causar o colapso do sistema de saúde.

Se não mudarmos essas condições, esse caldeirão pode cozinhar as próximas variantes. Por enquanto, demos a sorte de as vacinas continuarem eficazes contra a P.1. Enquanto escrevo, resultados preliminares anunciados pelo Butantan e pela Fiocruz atestam que as vacinas sendo produzidas no país continuam nos protegendo e serão ainda mais importantes. Mas se elas forem as únicas barreiras contra o vírus, se não tivermos mais nada controlando a pandemia, já vimos do que ele é capaz de escapar.

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