Atila Iamarino

Doutor em ciências pela USP, fez pesquisa na Universidade de Yale. É divulgador científico no YouTube em seu canal pessoal e no Nerdologia

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Atila Iamarino
Descrição de chapéu Coronavírus

O negacionismo antivacina brasileiro é único

Regiões com adesão à imunização infantil abaixo do esperado destoam do sucesso costumaz da vacinação brasileira

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Algumas regiões começaram a registrar uma adesão à vacinação infantil contra a Covid abaixo do esperado, o que destoa do sucesso costumaz da vacinação brasileira. E os motivos podem ser muito diferentes do movimento antivacina europeu ou norte americano.

No Brasil, criamos uma imunidade social contra o movimento antivacina. Na campanha de combate à poliomielite, ficou claro que precisaríamos da colaboração das famílias para ter uma boa cobertura de vacinação infantil. E a estratégia de comunicação do Ministério da Saúde foi se transformando de uma convocação impositiva para um ato de cuidado e amor com as crianças. Essa estratégia, associada à forte presença de agentes de saúde que agem como informantes de confiança das famílias, nos livrou da pólio e de outras doenças evitáveis.

Imagem divulgada pelo Ministério da Saúde sobre a campanha de vacinação infantil contra a Covid-19. O post contem a seguinte frase" Vacinar as crianças é uma decisão dos pais e responsáveis e é necessária sua autorização. Crianças com comorbidades terão prioridade. Em caso de dúvida, consulte um profissional da saúde. "
Imagem divulgada pelo Ministério da Saúde sobre a campanha de vacinação infantil contra a Covid-19 - Divulgação

O mesmo não pode ser dito dos EUA, onde a falta de um sistema público de saúde gera uma população enorme de hesitantes, que não estão acostumados a receber nem atendimento de saúde gratuito como vacinação gratuita nem a buscar atendimento de saúde com profissionais —até a ambulância é paga por lá, esquece "visitar o posto" para saber o que é um problema de saúde. Além disso, tanto na América do Norte quanto na Europa, há um forte movimento antivacina coordenado há décadas por uma indústria multimilionária, explorando muito bem os vídeos em redes sociais como o YouTube e o Facebook para a desinformação.

Já na antiga União Soviética, a insistência do governo em impor a vacinação obrigatória gerou uma desconfiança e um movimento antivacina como protesto, que ainda hoje mantém a vacinação em baixa e as mortes por Covid em alta no leste europeu. O oposto da nossa conquista com o Zé Gotinha.

Esse movimento antivacina "popular", de baixo para cima, com uma população desinformada ou desconfiada que rejeita os pedidos do governo para que se vacinem, tem pouca tração no Brasil. Até temos conteúdo antivacina traduzido que parece ter sido mais consumido por brasileiros mais ricos e mais bem informados, o que pode explicar pelo menos parcialmente a queda de vacinação infantil nos últimos anos. Mas o movimento antivacina da Covid é organizado de maneira oposta. Ele é um movimento de cima para baixo, onde o governo rejeita a vacina e os pedidos da população para nos vacinarmos.

Aqui, é o nosso ministro da saúde que usa as cinco táticas negacionistas que precisariam ser combatidas por quem quer informar as pessoas em uma campanha antivacina destruidora e sem precedentes. O ministro: (i) alimenta a conspiração de que as vacinas não são seguras ao ignorar a aprovação da Anvisa; (ii) usa falsos experts, ao dar palco para incompetentes antivacina na audiência sobre imunização para crianças; (iii) cria expectativas impossíveis com a cobrança de um termo de consentimento dos pais, pois a vacina infantil não é 100% segura —nenhum medicamento ou tratamento pode ser 100% seguro; (iv) seleciona problemas isolados ao visitar uma criança com uma doença congênita rara, dando a entender que seu problema cardíaco foi uma reação à vacinação contra a Covid; e (v) usa falácias lógicas (mente) ao afirmar "há cerca de 4.000 óbitos onde há uma comprovação de uma relação causal com a aplicação da vacina", uma vez que o estudo do próprio Ministério da Saúde só viu relação causal em 11 mortes entre as dezenas de milhões de brasileiros vacinados.

O negacionismo antivacina brasileiro é bem único. Ele é fomentado como uma fachada de um governo que não quis vacinar o seu povo e promoveu tratamentos que não funcionam, sabendo que não funcionam, e agora precisa sabotar a medida que salvou milhares de vidas. Se a dúvida dos pais fosse realmente sobre a eficácia ou a segurança da vacina, pais que não querem vacinar seus filhos não estariam tomando ivermectina ou cloroquina contra a Covid —medicamentos que comprovadamente não são eficazes e vão gerar efeitos adversos sem trazer benefício.

Temos uma infecção de desinformação crescendo. Deixar esse discurso oficial continuar nos será muito caro. O grande momento para se intervir no negacionismo antes de ele se estabelecer. Quando as pessoas ainda recebem os fatos distorcidos e começam a formar a sua opinião. Depois dessa fase, converter alguém que já tem uma opinião formada é muito mais difícil. Para quem tem dúvidas, os fatos precisam vir de uma fonte de confiança que está disposta a estabelecer contato. Por isso os relatos de profissionais de saúde e políticos desencorajando os pais que querem vacinar seus filhos são especialmente preocupantes.

Já pagamos pelo atraso da vacinação contra a Covid com UTIs pediátricas cheias. Mas a corrosão da confiança pública na vacinação infantil não costuma parar na vacina que gerou a discussão. A vacinação infantil como um todo sofre quando os pais perdem a confiança nas vacinas. E em 2019 nós já estávamos com a pior vacinação infantil desde a década de 80. Logo poderemos ter crianças com sarampo ou pólio ocupando leitos.

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