Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Bernardo Carvalho

Seleção da Bienal entende a arte como produtora de conhecimento e sentido

Mostra faz gesto a favor da capacidade de perturbar por meio do que ainda não se compreende

A 33ª Bienal de São Paulo se presta a ser criticada pela falta do que edições anteriores e recentes tinham em excesso. 

Na sua opção discreta por uma curadoria descentrada, híbrida ou múltipla (compartilhada com sete artistas-curadores convidados), o espanhol Gabriel Pérez-Barreiro assumiu o risco de criar uma mostra sem direção nem obra de destaque.

A primeira impressão pode ser de rarefação ou vazio (também há, como em outras mostras desse porte, escolhas questionáveis), mas é notável a generosidade de uma exposição não normativa, sem palavra de ordem, ainda mais num tempo e num mundo onde tudo se tornou declaração e explicação sem que o entendimento seja maior.

Na discrição porosa e permeável de sua autocrítica, o curador não deixa de tomar uma posição contundente em nome da subjetividade e do desconhecido.

Pérez-Barreiro justifica sua opção com uma frase atribuída ao crítico Mário Pedrosa: “Em tempos de crise, fique do lado dos artistas”. Ou das obras. E sobretudo dê-lhes a chance de revelar o que talvez ainda não tenha nome, não tenha passado por sua cabeça e não corresponda nem ao que você esperava nem aos consensos e aos discursos com os quais está acostumado.

Talvez venha daí a impressão de anacronismo, de volta a um tempo anterior à hegemonia dos projetos curatoriais.

Nesse sentido, é exemplar o texto de Waltercio Caldas na abertura do espaço que ele concebeu com obras suas e de artistas que compõem suas afinidades eletivas (ou afetivas, como quer a divisa tão maleável desta Bienal): “É sempre bom lembrar que as verdadeiras obras de arte ignoram qualquer discurso que as desvirtue, e são suficientemente eloquentes para desautorizar interpretações oportunistas”.

É claro que isso não significa o elogio da ignorância ou a desautorização do pensamento crítico. É apenas a substituição da “ideia de demonstração pela de apresentação”, nas palavras do artista. Maiores esclarecimentos vêm em seguida, não sem algum humor: “Acredito que a arte pode melhorar a qualidade do desconhecido (...), alterar as regras em benefício do que ainda não sabemos”.

É o oposto de uma seleção por preconceito ou conclusão prévia, reunindo, com base num discurso a priori e exterior, obras diversas e muitas vezes díspares, como ilustração do que já ouvimos e já sabemos. É o oposto da compreensão da arte reduzida a expressão ou ilustração de discursos que circulam no mundo.

É, enfim, um gesto a favor da capacidade de surpreender e perturbar por meio do que ainda não se compreende. 

Desse ponto de vista, o aparente anacronismo poderia ser lido antes como uma aposta nas obras e nas possibilidades do impensado, contra os discursos “naturais”, consensuais e oportunistas do presente.

É dar à arte o crédito de poder dizer o que ainda não foi expresso nem pode ser expresso por outros meios (a isso dá-se o nome hoje tão vilipendiado de autonomia). Não se trata de mistificação, muito menos de pôr a arte fora do mundo, mas, ao contrário, de entendê-la não apenas como uma máquina de reprodução e reconhecimento, reduzida a ilustração, mas como produtora de conhecimento e sentido.

O desconforto da sueca Mamma Andersson diante da promiscuidade entre arte e poder, reiterada ao longo dos séculos, contribui para a tomada de partido por “artistas solitários” em sua seleção. 

Mais que “solitários”, esses artistas são casos de indivíduos marginais, borderline, quase todos transitando no limite da arte (do que nomeamos arte) e às vezes também da razão. 

É claro que o parti pris pelo excêntrico, em si, como princípio, também pode se converter em armadilha, modismo, elemento de marketing cultural, mas o que a artista enfatiza à sua maneira é uma posição firme a favor das singularidades que escapam ao funcionamento oficial e consensual da arte —e, portanto, também aos discursos curatoriais.

Dos sete artistas-curadores convidados, a brasileira Sofia Borges foi a única a inverter a frase de Mário Pedrosa: em tempos de crise, fique do lado dos curadores. É mais seguro e mais efetivo não contrariar a língua do presente. 

A artista tentou fazer a singularidade alheia caber na sua própria moldura, submetendo suas escolhas a uma razão que impõe um sentido externo à violência e ao estranho, e de algum modo, ao fagocitá-los, domestica por meio de uma declaração delimitadora o que neles era irredutível. 

Seu espaço é o único a reproduzir a ideia de protagonismo da curadoria, em detrimento das obras, e a transformá-la, talvez numa crítica involuntária, em caricatura.

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