Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Bernardo Carvalho

Inversão primária e insustentável está na base ideológica do bolsonarismo

Potencial econômico da diversidade escapa ao nonsense de raiz praticado pelos seguidores do eleito

Não sei por que continuo a me espantar com a lógica bolsonarista. Descobri outro dia que amigos de adolescência que não vejo há anos (e com quem li Hermann Hesse, Fernando Pessoa e Jean-Paul Sartre pela primeira vez) votaram em Bolsonaro. Eram pessoas inteligentes e sensíveis.

Entre esses amigos, havia uma menina que namorou outras meninas e fez pelo menos um aborto antes de se casar e constituir família. Recorreu a uma clínica frequentada por garotas de classe média alta, filhas de gente que combate o direito ao aborto dos outros.

Os filhos adultos da minha amiga me disseram que ela se sentiu “traída pelo PT”. Também me senti “traído pelo PT”, mas nada, nem mesmo a traição do PT, me levaria a votar em alguém capaz de fazer o elogio da tortura em plenária no Congresso nacional.

Me pergunto se minha amiga de adolescência estará se sentindo contemplada com a nomeação de uma pastora neopentecostal para ministra das Mulheres e dos Direitos Humanos (mais Funai), de um ministro do Meio Ambiente que considera a mudança climática uma questão secundária e de um admirador da ditadura militar na pasta da Educação. Estará se sentindo vingada da traição que diz ter sofrido?

Digamos que, ao votar, meus amigos de adolescência tenham pensado primeiro nos privilégios de classe, mas sem levar em conta que também abriam mão deles ao desconsiderar o que deveria ser comum a todos e que torna um país habitável.

Devem ter votado para defender o deles, a despeito do direito de todos, sem perceber que aí se incluíam. Não foi por burrice. A menos que suicídio e burrice sejam a mesma coisa.

Venho tentando me conformar com o estado das coisas, mas a lógica bolsonarista volta e meia me pega de surpresa, quando estou menos preparado à provocação.

Em entrevista a este jornal, o futuro ministro do Meio Ambiente pôs em dúvida, como “ideológica”, a autuação do presidente eleito por pescar em reserva de Angra dos Reis: “Ele não foi multado por pescar. Ele foi multado porque estava com uma vara de pesca”.

O exercício de retórica é uma provocação à inteligência e anuncia um modo de interpretação, acobertamento e justificação das ações do futuro governo capaz de tirar qualquer um do sério.

Ao contrário do que prega a lógica bolsonarista, não são os gays que querem impor seu modo de vida ao resto da população (reivindicam apenas seus direitos de cidadãos); são antes pastores e religiosos que acham que os gays devem se comportar segundo sua cartilha. O Estado laico não impõe aos crentes o ateísmo, mas o Estado comprometido com a religião condena a existência de ateus.

O destino dos indígenas e suas culturas foi posto nas mãos de uma pastora neopentecostal. Afinal, quem quer doutrinar quem? Quem quer impor o que a quem? Uma inversão primária e racionalmente insustentável está na base ideológica do bolsonarismo.

O potencial econômico da diversidade cultural e biológica escapa ao nonsense de raiz praticado pelos bolsonaristas. A intenção pode até ser alinhar-se à política de Trump e flexibilizar a proteção ambiental a favor do imediatismo econômico, da monocultura, do extrativismo e da mineração.

O diabo é que o agronegócio brasileiro também depende do selo de qualidade ambiental para manter e ampliar suas exportações. Daí a necessidade da fachada retórica.

Li há alguns anos o livro de um linguista (“Dying Words”, de Nicholas Evans) que associava a diversidade de línguas e culturas à capacidade de sobrevivência da espécie. Cada língua e cada cultura que desaparecem, com suas singularidades, seus saberes e suas relações específicas de compreensão do mundo, diminuiriam nossa capacidade de adaptação e perspectiva de sobrevivência.

A exemplo de um corpo com anticorpos reduzidos em número e variedade, ou de uma terra esgotada pela monocultura, quanto mais uniformes nos tornamos, mais pobres e vulneráveis vamos ficando diante dos acasos e das adversidades e mais nos aproximamos da extinção.

Um estudo de 1996 sobre a correlação entre diversidade biológica e linguística (publicado por David Harmon no Southwest Journal of Linguistics) destacava o Brasil entre os primeiros da lista de países com maior número de línguas endêmicas (185) e de espécies vertebradas superiores (725). 

A compreensão utilitária que o bolsonarismo tem do meio ambiente, agora sob a retórica magistrática do novo ministro, deve turbinar o expresso que nos afasta do topo da lista. Já viramos a curva. Desta vez é muito possível que não haja passagem de volta.

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