Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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O desejo desafia as convenções sociais, que mudam conforme a necessidade

É preciso admitir, como adultos, que as contradições são parte constitutiva do mundo

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Seis de janeiro, Epifania ou Dia de Reis (em referência aos reis magos), fecha o ciclo natalino que, entre os romanos, antes de os cristãos se apropriarem da data para comemorar o nascimento de Cristo, festejava o renascimento do Sol depois do solstício de inverno (o dia mais curto e a noite mais longa do ano).

Era uma festa de invocação e celebração do Sol, pelo fim das noites invernais, por um inverno mais brando. Epifania significa aparição, manifestação, revelação.

Durante esses festejos pagãos, os papéis sociais se confundiam. Havia troca de presentes e de identidades. O escravo assumia o lugar de senhor, o homem se vestia de mulher —como se, para agradar à natureza, para sobrevivermos todos, tivéssemos de reconhecer, nem que fosse apenas por uns poucos dias, a arbitrariedade das convenções culturais e sociais.

renata e tonico caracterizados
Renata Sorrah e Tonico Pereira em montagem da peça "Noite de Reis", de Shakespeare, dirigida por Amir Haddad em 1997 - Divulgação

Nesse intervalo de poucos dias, o homem aceitava como natural o que por convenção suas relações sociais e de poder não permitiam. Ameaçado pelos caprichos da natureza (e em nome de sua clemência), admitia seus próprios caprichos, reconhecia que as coisas são bem mais complexas do que estamos dispostos a ver.

Uma das medidas mais contundentes dessa complexidade é o desejo.

É plausível que Shakespeare tenha escrito “Noite de Reis” (“Twelfth Night”), segundo Harold Bloom sua comédia mais bem-sucedida, pensando nessa carnavalização solar, para comemorar a Epifania, a décima segunda noite depois do Natal.

claudia e erico caracterizados, com espadas
Cláudia Abreu e Érico de Freitas em montagem da peça "Noite de Reis", de Shakespeare, dirigida por Amir Haddad em 1997 - Divulgação

A peça conta a história de Viola e Sebastian, gêmeos que naufragam ao largo do que hoje seria Croácia, Montenegro ou Albânia, e que no texto se chama Ilíria. . 

Viola acredita que o irmão se afogou. Ao oferecer seus serviços a Orsino, duque de Ilíria, ela se disfarça de homem, assumindo o nome de Cesário.

É o suficiente para pôr em andamento uma comédia de erros na qual o amor e as identidades serão confrontados com a relatividade das nossas convicções.

Viola se apaixona pelo duque, que ama a condessa Olívia, mas não é correspondido. A condessa, de luto pela morte do irmão, que ela amava acima de tudo, recusa-se a receber quem quer que seja.

O duque envia seu mais novo ajudante, Cesário (Viola), para tentar convencê-la do seu amor. A condessa, entretanto, apaixona-se pelo mensageiro, em princípio sem imaginar que está diante de uma mulher. Viola, por sua vez, não ousa revelar seu amor pelo duque, temendo trair seu disfarce. Sua presença em Ilíria expõe os caminhos tortos do desejo, o jogo de espelhos.

A aparição de Sebastian, o irmão gêmeo que Viola acreditava morto, vai pôr tudo de volta nos eixos convencionais, como depois do Carnaval, contrariando os desígnios do desejo. A condessa se casa com Sebastian, e o duque, com Viola.

O sentido irônico do subtítulo da peça —“What You Will” (o que bem quiserem ou desejarem)— dá a entender que o desejo desafia as convenções que o encobrem. As convenções se modificam conforme a necessidade. O desejo é inconveniente; ele as contradiz. Identidade e desejo são muitas vezes incompatíveis.

É o que reivindica a filósofa e feminista Rosi Braidotti em entrevista a António Guerreiro no terceiro número da revista portuguesa Electra, publicado em setembro: “É preciso estar à altura da complexidade”.

Braidotti critica a banalização dos discursos identitários, uma incapacidade de lidar com a complexidade, análoga às soluções simplistas e infantilizadas que discursos nacionalistas populistas costumam contrapor às contradições.

“As pessoas estão fatigadas de tanta fluidez e há um regresso às estruturas fixas do fascismo”, diz.

Diante da contradição e da complexidade, é natural seguir a ilusão do caminho mais curto e das respostas mais imediatas, mais simples e em geral mais burras e inconsequentes.

Braidotti recorre à psicanálise quando propõe que, antes de nos agarrarmos à aparente boia de salvação das identidades fixas, deveríamos tentar entender o que é uma identificação.

É preciso levar em conta “como funciona o imaginário, como é que o processo inconsciente estrutura o social, os níveis fantasmáticos, os níveis do delírio”.

Sob a graça da comédia, Shakespeare fala da fluidez insuportável das identidades. Epifania significa revelação. Tem a ver com a luz, com o fim de tempos sombrios, com o entendimento e a compreensão.

Mas para voltar a ver e compreender é preciso admitir, como adultos, que as contradições são parte constitutiva do mundo. A democracia, em sua imperfeição e irrealização permanentes, depende disso.

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