Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Espetáculo contraria o prazer do autoengano brasileiro

Desafio para a crítica do moralismo populista é escapar à armadilha da demagogia

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Há duas semanas, me vi sentado durante uma hora e 40 minutos diante de três atores ingleses que, fantasiados de frangos amarelos, repetiam no palco o mesmo texto e a mesma cena, inspirada num desses jogos idiotas de auditório.

Enquanto um dos atores encarnava o apresentador, o outro pensava numa palavra que uma atriz, de olhos vendados, tinha que adivinhar. Depois de três tentativas frustradas, os três trocavam de papel e voltavam ao mesmo texto e aos mesmos erros, infinitas vezes, com pequenas variações, até a exaustão e o desespero. Em meio ao desconforto da plateia, comecei a desconfiar que, talvez, estivessem falando de nós.

Nós, brasileiros, já entendemos que o presidente que elegemos não peca pela inteligência. Nada tem a perder ou temer num país boçal, cujo projeto ele acalenta mais por intuição —por afinidade de grupo e instinto de sobrevivência— do que por estratégia.

Também já entendemos que sua eleição nada tem de revolução, a despeito do que dizem seus ideólogos; é antes um arrastão no Estado e nas instituições. Jogadas umas contra as outras, na inércia da incompetência e da ingovernabilidade, elas degringolam rumo ao caos no qual a estupidez e a arbitrariedade poderão enfim reinar livres de controle e entraves, sem necessidade de justificar excessos e exceções.

Já notamos que, no vácuo da ética, procuradores, juízes e ministros atropelam, sem pensar duas vezes, a deontologia de suas atribuições, sob o clamor da moral.

O caso da tentativa de acordo dos procuradores do Paraná com a Petrobras para a criação de um fundo bilionário sob sua jurisdição (sempre com o pretexto do combate à corrupção) é exemplar. Assim como a política ambientalista a serviço dos grandes proprietários rurais, a criminalização da educação em detrimento da educação e a concepção de um modelo de vida sexual e privado para os brasileiros, por um ministério encarregado dos direitos humanos.

Já sabemos que, no lugar do Estado laico como garantia do direito e da liberdade de culto, o governo Bolsonaro gostaria de impor a crença que lhe convém à totalidade da nação.

Já percebemos que o Brasil de Bolsonaro é o do ressentimento de um arrivismo moral contra tudo o que o contraria, que a entropia chancelada por sua eleição tem como divisa "cada um por si e nós por todos", em todas as instâncias, públicas e privadas. E que o limite desse arrivismo por enquanto ainda é a opinião pública. É natural que seu símbolo de justiça e de liberdade seja uma arma em minhas mãos.

Incompreensível seria que esperássemos outra coisa.

Espetáculo 'Mágica de Verdade', do grupo inglês Forced Entertainment
Espetáculo 'Mágica de Verdade', do grupo inglês Forced Entertainment - Divulgação

E é disso que fala "Mágica de Verdade" (Real Magic), do inglês Tim Etchells, com a companhia Forced Entertainment, provavelmente o espetáculo mais radical apresentado na MIT, há duas semanas.

A certa altura, depois de mais de uma hora repetindo em moto-contínuo a mesma cena, um ator passa a soprar a palavra que ele pensou ao ouvido do colega que precisa adivinhá-la. Chega a esfregar na cara do outro a palavra escrita, mas o outro, depois de observá-la com olhar bovino, continua dizendo a palavra errada, impermeável às evidências. Nessa hora, alguns espectadores começam a gritar, porque é insuportável. Gritam a palavra certa, o óbvio, o que todo mundo já viu, ouviu e entendeu, e que continua sem produzir nenhum efeito.

O maior desafio para a crítica do moralismo populista é escapar à armadilha da sua demagogia. Como é possível uma reflexão de verdade se não se pode contrariar o público? Como é possível uma reflexão de verdade que depende de agradar as crenças e os preconceitos do interlocutor? O que é que estamos realmente dispostos a ver, ouvir e entender?

"Mágica de Verdade" encena o círculo vicioso e impermeável do absurdo e da boçalidade. É tortura para a plateia, que procura não se reconhecer no palco. A insistência no absurdo mais tosco acaba revelando os parvos indefesos que o mantêm. São ao mesmo tempo agentes e vítimas das suas próprias ações, incapazes de romper a corrente automática e repetitiva à qual estão agrilhoados e de enxergar ou compreender o que têm diante dos olhos, porque isso significaria contrariar sua lógica e sua ilusão.

É um espetáculo corajoso, mas duríssimo de ver, justamente porque nos diz respeito, porque contraria o prazer do nosso autoengano inconsequente e do nosso consentimento suicida.

A título de curiosidade, o espetáculo foi apresentado no teatro do Sesi, no centro cultural da Fiesp, templo dos que não faz muito tempo ainda gritavam nas ruas que não iam pagar o pato.

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