Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Justiça, no caso de Moro, é ideia fora do lugar

Um fio liga Quincas Borba a quem não vê nada de mais na suspeição de um juiz

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Não basta estar mais ou menos resignado a viver num país de ideias fora do lugar para engolir um ministro da Justiça (este pelo menos com a desculpa de salvar a própria pele), mas também um ex-presidente ilustrado e velhos juristas conformados ao bolsonarismo, adiantando-se já na primeira hora para anunciar que não veem “nada de mais” na revelação de conluio entre um juiz e um procurador da República.

Quincas Borba, protagonista do romance de Machado de Assis e inventor de uma “filosofia” selvagem de inspiração darwinista e schopenhaueriana (a partir da qual o crítico Roberto Schwarz formulou o conceito das “ideias fora do lugar”), também soube adaptar o que parecia funcionar alhures à impropriedade das contingências locais.

Seu “humanitismo” anunciava a hipocrisia dos nossos ilustres contemporâneos. O oportunismo destes, como o de seus antepassados, com a desculpa renitente de um ideal incompatível com a prática, tenta vestir a desgraça local com as cores pálidas de um universalismo fajuto.

Se nossos ilustres contemporâneos não estão nem aí para a suspeição criada pelo conluio entre juiz e acusação, é simplesmente porque não podem se imaginar no banco dos réus. Continuam a se comportar no diapasão altivo da herança que esse mesmo conchavo escuso e antiético em princípio alega combater.

Se seguem sentindo-se imunes, só pode ser porque no fundo o objetivo do conluio não está nos fins que ele prega para atropelar os meios. Afinal quem desejaria correr o risco de ser julgado por um juiz associado à acusação?

A ideia fora do lugar, nesse caso, é a própria justiça. Nem é preciso dizer que as consequências são gravíssimas. É ilustrativa a declaração de Sergio Moro ao jornal O Estado de S. Paulo, tentando minimizar o efeito dos vazamentos: “Sei que tem outros países que têm práticas mais restritas, mas a tradição jurídica brasileira...”.

Traduzida nos termos do absurdo semidemente (porque interessado) do “humanitismo”, a frase redefine mais uma vez o sentido de igualdade entre nós: já que somos todos iguais (partes do mesmo), não existe parcialidade.

Quincas Borba concebeu um “sistema de filosofia para arruinar todos os demais sistemas” (parece que reconhecemos algo aqui): como no fundo somos todos partes de uma matriz comum (“humanitas”), as desgraças de uns se justificariam pelo bem dos outros. As injustiças e os flagelos a que alguns estão submetidos seriam meros “equívocos do entendimento”.

“Nasceu esse africano, cresceu, foi vendido; um navio o trouxe (...) com o único fim de dar mate ao meu apetite. (...) Pangloss (...) não era tão tolo como pintou Voltaire”, insiste Quincas Borba.

O “humanitismo” é o otimismo repaginado dos escravocratas, Pangloss sem a ironia de Voltaire, transportado para a nossa pobreza de espírito: o escravo não sofre propriamente; vive o prazer vicário do senhor. O deleite deste justifica o sacrifício daquele, porque no final das contas são “movimentos externos da (mesma) substância interior”.

A coisa fica ainda pior com o arremate de uma certa “teoria do benefício”, segundo a qual apenas o beneficiador consegue reter o sentido do seu ato. O beneficiado, uma vez terminada sua privação, volta ao estado anterior de indiferença. Conclusão: não vale a pena perder tempo com mal-agradecidos. Arremedo de filosofia, silogismo à brasileira, o “humanitismo” supõe que a igualdade seja de natureza metafísica, de onde conclui que as desigualdades reais são mera aparência.

Não é difícil seguir o fio que liga o raciocínio de Quincas Borba ao de quem não vê nada de mais na suspeição de um juiz. É a mesma lógica semidemente, agora na convicção de que a letra da Justiça pode valer como ideia, em algum lugar “mais restrito”, mas não aqui, terra de arbítrio, sofismas e inversões, onde as ideias são aceitas “por razões que elas próprias não podem aceitar” (Schwarz).

O desmonte do princípio de um contrato social republicano (que valeria apenas em lugares onde as práticas são “mais restritas”) é precisamente a base do círculo vicioso que fragiliza a sociedade e a lógica diante das investidas antidemocráticas. E o que leva a concluir que o conluio não se restringe a um juiz e a um procurador. 

As ideias fora do lugar (afinal, aqui tudo é diferente, democracia não é exatamente democracia, fascismo não é exatamente fascismo etc.) permitem aos nossos ilustres contemporâneos apoiar homens errados em lugares errados, tomando decisões erradas que terão as piores consequências para todos nós.

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