Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Em 'Parasita', ridículo é quem crê na normalidade das estruturas

Metáforas são evidentes na comédia de Bong Joon-ho sobre o estado insustentável da desigualdade

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Sem deixar de reconhecer seus méritos (e não são poucos), o crítico Richard Brody, da revista The New Yorker, classificou “Parasita”, do coreano Bong Joon-ho, como um filme conservador. Entre outras coisas, por expressar a urgência de uma correção da ordem social e econômica, sem nunca romper com as regras do entretenimento comercial. Não deixa de ser uma tática.

Já entendemos que as coisas perderam o rumo, mas continuamos caminhando para o precipício. Bong se apoia nesse consenso impotente para transmitir uma parábola admonitória que nos faz rir ao mesmo tempo que nos confronta com o nosso próprio suicídio.

Ortega y Gasset dizia que a comédia era o gênero literário dos partidos conservadores, por confirmar o poder do que já está estabelecido: o indivíduo que se encontra fora das estruturas torna-se ridículo, cômico.

Bong inverte a lógica. Ridículo é o cego que ainda acredita na normalidade das estruturas. É como se, com as estruturas desmoronando, a comédia tendesse a clamar pela reforma da ordem, nunca por sua ruptura. O filme recebeu a Palma de Ouro no Festival de Cannes e estreia no Brasil em 7/11.

Já nos primeiros minutos, o protagonista, filho de uma família de párias e pivô de toda a ação, considera, diante da miséria à sua volta, o quanto “tudo é metafórico”.

As metáforas consensuais, aquelas cujo sentido reconhecemos imediatamente, confundem-se com as caricaturas. Na comédia proposta por Bong para falar do estado insustentável da desigualdade no mundo, as metáforas são evidentes. Rimos do que já entendemos. A hipérbole, entretanto, procura criar pelo menos algum tipo de constrangimento nesse riso.

O filme opõe uma família de desempregados, condenados a viver criativamente nos esgotos, como parasitas de uma ordem social e econômica suicida, a uma família de ricos, frívolos e inconsequentes, enredados em suas pequenas neuroses e ambições previsíveis, entre os muros que os separam da realidade.

Atentos às menores chances de sobrevivência, em pouco tempo pai, mãe e os dois filhos da família pobre estarão ocupando cargos de confiança na casa dos ricos, graças a uma série de circunstâncias e imposturas mais ou menos cômicas.

De todas as metáforas, é a casa onde vivem os ricos que acaba pondo em questão o próprio filme. Obra de um arquiteto famoso, representativa de uma tradição moderna de elegância e conforto minimalista, a casa também é mal-assombrada, a julgar pelas visões do filho menor.

O menino é autor de uma série de desenhos expressionistas que a mãe atribui a um talento inato, e a irmã mais velha, a uma farsa familiar. Diante de um desses desenhos, fazendo de tudo para agradar a dona da casa, o rapaz da família pobre, convertido em tutor da filha adolescente da família rica, reconhece a representação de um chimpanzé. A mãe rica o corrige, orgulhosa: trata-se do autorretrato do filho.

A piada é fácil e remete, de modo invertido, à velha história do sujeito que desmerece a arte moderna, alegando que até o filho pequeno seria capaz de fazer o mesmo.

O que se instila então na parábola de Bong Joon-ho é um conservadorismo estético. É fato que o estado político, social e econômico do mundo desautorizou as ambições da modernidade. A casa da família rica, em seu empenho modernista, não só não resolve a assombração econômica da desigualdade como a esconde, encobre, transforma-a em fantasma.

Mesmo ironizando o projeto modernista, que no final das contas serve aos ricos e se ergue sobre o suor e o sangue dos pobres, Bong não pode romper, por razões táticas, com as regras do sistema de entretenimento que acompanha e alimenta essa mesma ordem desigual.

É como se em épocas de crise das estruturas e dos sentidos, o discurso artístico também precisasse recorrer a um certo populismo, reduzir-se ao mais básico e mais consensual entendimento das coisas (as metáforas imediatamente reconhecíveis por todos), evitando as contradições e o mistério que são a matéria de uma arte mais radical, de ruptura.

A comparação entre “Parasita” e “Corra”, de Jordan Peele, talvez seja esclarecedora. Embora pareçam resultado de um mesmo entendimento do mundo, no filme de Peele nada é imediatamente reconhecível. Humor e terror se confundem na radicalidade de uma ruptura de gêneros tão delirante quanto reveladora. 

Em “Parasita”, ao contrário, o delírio final não revela propriamente nada que já não estivesse visível. Não há desejo de ruptura nem revolução. Com a ponderação típica de um conto moral, ele apenas nos exorta a salvar o que ainda não desmoronou.

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