Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Bernardo Carvalho

Roupa do bolsonarismo não cabe em Elizabeth Bishop

A poeta representa o contrário de tudo o que quer e propõe o atual governo

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Como a maioria das pessoas cujas vidas são sacudidas por medidas econômicas que elas não compreendem, também não entendo patavina de economia. Nossa incompreensão serve de pretexto para a prepotência de quem, como o pastor em suposta ligação com Deus, acredita ter mais direitos sobre nosso destino do que nós mesmos. Até que as coisas começam a dar errado.

É precisamente essa prepotência que leva um ministro de Estado com uma cartilha ideológica clara e interessada, mas que não corresponde nem de longe ao interesse comum (certamente não ao meu), a fazer ameaças desavergonhadas contra o Estado democrático de Direito que o pôs onde ele está, assim que seu evangelho começa a correr o risco de ser contrariado pelo mundo real.

Se restar algum vestígio de ser humano daqui a alguns séculos, é possível que o que estamos vivendo agora, convertido em caricatura grosseira em países como o Brasil, venha a ser lido como parábola admonitória, legenda mítica sobre um tempo longínquo de imposturas e cegueira ao qual ninguém gostaria de voltar. 

A prepotência (é sempre bom não relevar a parte da má-fé e do oportunismo, já que nada é simplesmente uma coisa só) não permite aos iniciados na cartilha (e como condição para poder impô-la) enxergar o óbvio que os analfabetos percebem a olho nu.

É da natureza dos dogmas que os iniciados (os que, como pastores, reivindicam as rédeas do destino dos ímpios) sejam impermeáveis à simplicidade dos problemas que atormentam os ignorantes: que os níveis de concentração de capital são insustentáveis, por exemplo.

Entretanto, como uma máquina cega e surda (cuja lógica, apesar de funcionar a contento em circuito fechado, não passaria na prova mais singela de moralidade), seguem professando soluções extemporâneas e suicidas, porque concebidas para um mundo que já não existe. 

Fica explicado por que é preciso calar a realidade, as contradições e o dissenso, por que as “fake news” se tornaram ferramentas indispensáveis de propaganda e por que a perspectiva de uma teocracia autocrática pode ser não só compatível com essa “ciência”, mas conveniente. O rei está nu, melhor mudar o foco.

Desfocar também é a condição do debate recente sobre a escolha de Elizabeth Bishop como homenageada na Flip. A comparação pode parecer estapafúrdia à primeira vista, mas associar a poeta ao bolsonarismo (porque Bishop, em cartas a amigos americanos, sob a influência do seu círculo de conhecidos no Brasil, se disse simpática ao golpe militar de 64) equivale, por oposição, à recusa de associar bolsonarismo e fascismo, sob a desculpa de que são fenômenos históricos distintos.

Nos dois casos, ignora-se que a história é um processo dinâmico, que as coisas vão e voltam com novas roupas e que a do bolsonarismo não cabe em Elizabeth Bishop.

A poeta representa o contrário de tudo o que quer e propõe o atual governo. A tragédia é que somos presa fácil do barateamento contagiante das ideias, do qual fenômenos como o bolsonarismo dependem. Seu objetivo é desnortear a razão, propor que a Terra seja plana, que Deus esteja acima de todos, enquanto ajoelha diante de uma cartilha monetarista.

Resistir a associar bolsonarismo e fascismo, e associar Elizabeth Bishop ao bolsonarismo, embora pareçam impulsos opostos, acabam se revelando armadilhas da mesma ordem, provocadas pela nossa incapacidade de encarar e incorporar as contradições antes de dar nome às coisas.

Não é preciso muito esforço nem muita sensibilidade para entender que Elizabeth Bishop, sendo a poeta que foi e apesar de tudo o que possa ter dito ou pensado sobre o golpe militar de 64, é incompatível com a ideologia do atual governo, assim como é fácil entender por que o bolsonarismo tem, e nunca escondeu ter, mesmo quando fala em nome da “democracia”, um horizonte fascista, a despeito das distinções históricas entre os dois movimentos. 

A grandeza da arte vem das ambiguidades e das contradições das obras, não do que dizem os artistas. É o fascismo que, ao contrário, não dispensa palavras de ordem.

Recusar um entendimento complexo e dinâmico dos paradoxos e da contradição nas artes, como se seguíssemos os preceitos simplistas de uma cartilha, só nos afunda ainda mais na impotência em que nos debatemos para escapar ao mais infeliz concerto de circunstâncias da história brasileira dos últimos 50 anos. O barateamento oportunista das ideias corresponde ao projeto populista do bolsonarismo. Não é porque o rei está nu que nós também devemos estar. De oportunistas, bastam eles.

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