Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Bernardo Carvalho

'Essa frase é nossa!'

'Será que ele acha que é o presidente?'

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— Você acha que ele não vai sair? Já foi todo mundo embora. Ele tá refestelado lá na sala.

— Quer que eu faça o quê?

— Olha lá.

— Será que ele bebeu demais?

— Parece que não quer ir embora. E amanhã você ainda tem carreata, né?

— Vou lá ver com ele. (Caminha até o homem sentado no sofá) Então, tudo bem? Todo mundo já foi. Você veio de carro? Ficou sem carona? Quer que a gente chame um Uber?

Policial carregando fuzil e usando máscara e carros com bandeira do Brasil ao fundo
Policial usa máscara respiratória durante carreata contra as medidas de isolamento social do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel - Ricardo Moraes - 15.abr.2020/Reuters

— Acho que ele tá falando alguma coisa.

— Mandou chamar um amigo ex-policial.

— Bizarro... Ele tossiu? Sai de perto! Você lembra se ele veio de máscara?

— Acho que a gente teria notado, não?

— Ô! Cadê sua máscara?

— Esquece. Não adianta.

— Pergunta se ele quer que a gente chame alguém da família, os filhos.

— Você quer que a gente chame seus filhos?

— Que foi que ele disse?

— Disse que é pra não meter a família no meio, senão ele mete...

— Já sei, pode parar.

— Disse que, se vacilar, ele convoca uma guerra civil, tem legiões de asnos armados que ainda acreditam nele aí fora.

— Ui! Ué? Ele tá chorando?

— Hmmm. Acho que é teatro.

— Não chega muito perto! Pergunta se ele precisa de ajuda pra levantar. Vai ver que é isso. Vai ver que não consegue ficar em pé sozinho.

— Disse que não precisa de ajuda de ninguém, que aqui quem manda é ele.

— Será que ele acha que já está em casa?

— Talvez.

— Que foi agora?

— Disse que não veio pra construir.

— Como é que é?

— Foi o que ele disse.

— Olha, ele tá falando de novo. Vê aí o que é.

— Nunca imaginou que chegaria até aqui.

— Falei pra você não convidar.

— Tá dizendo que não vai largar o osso.

— Louco.

— Eu sou a Constituição.

— Como é que é?

— Foi o que ele disse: Eu sou a Constituição.

— Doido. Quem é que ele pensa que é?

— Ele já disse, acha que é a Constituição.

— Como é que a gente vai se livrar desse traste agora? Você resolve, você convidou, vou dormir.

— Peraí, ele pegou o telefone. Tá ligando pra alguém.

— Que é que ele falou agora?

— Tá pedindo instruções.

— Sobre?

— Sobre os próximos passos.

— ?

— Tá dizendo que, enquanto mantiver os generais no cabresto, está tudo sob controle.

— Generais?

— Deve ser como ele chama os colegas.

— Você acha que ele é do tráfico?

— Difícil. Disse que tem contato com ex-policial.

— Será que ele acha que é o presidente?

— Acho que não. Disse que veio pra destruir.

— Não vai deixar ele vomitar no sofá. Já basta estar tossindo sem máscara.

— Perguntou o que é sofisma.

— O quê?

— Perguntou o que é sofisma.

— Eu entendi. Pra quem? Pra gente?!

— Não, pro cara no telefone. Parece que não entendeu, quer saber o que é sofisma.

— E aí?

— Acho que o cara está explicando. Ele está balançando a cabeça. Parece que agora entendeu, disse que vai continuar confundindo, dizendo uma coisa um dia, o contrário no dia seguinte, chamando as coisas pelo contrário do que elas são.

— Onde foi que você encontrou esse cara?! Só falta você me dizer agora que está decepcionado, que ele não era assim...

— Achei que podia servir. Vai que a gente precisasse de alguém pra resolver algum perrengue, sei lá, uma coisa que a gente sempre quis fazer mas não podia. Tipo aquela terra embargada lá no Norte, ou tirar os pontos da sua CNH, ou limpar o nome da empresa.

— Sim. E tem também a ação trabalhista que a Rosinha tá movendo contra a gente. Mal-agradecida.
— Ele é do tipo topa-tudo, pau-pra-toda-obra.

— Entendi, minha preocupação é a gente aqui. Você acha que ele é inofensivo?

— Olha só a cara dele pedindo instruções. Não consegue nem se levantar sozinho do sofá.

— Bom, então vou dormir.

— Pera, peraí.

— Que foi?

— O cara tá mandando ele atear fogo em tudo.

— Aqui?!

— Não entendi direito.

— Como é que você sabe? Você ouviu?

— Ele fica repetindo que ainda estão comendo na mão dele. Acho que o outro deve ter dito que agora é a hora. E ele respondeu que não vai deixar passar essa oportunidade.

— E agora? Que é que a gente faz?

— Sei lá.

— Será que ele acha que a gente é burro? Tá falando da gente!

— Não.

— De quem mais?

— A gente não é burro.

— Vai tentar alguma coisa aqui.

— Impossível, não tem condição. Olha o estado do sujeito.

— Então que chance é essa que ele não vai perder?

— Sei lá, mas não é com a gente.

— Cadê ele?

— Foi lá pro quarto!

— Vai lá atrás dele!

— Tá deitado na cama.

— Na nossa?

— E daí? Lamento, quer que eu faça o quê?

— Como é que é?!

— Foi o que ele disse.

— Ele tá debochando da gente? Essa frase é nossa!

— Mandou ir arrumando a mala.

— Que mala?

— Quer saber quanto tempo vai levar pra gente entender quem é que vai sair daqui de verdade.

— Cadê a arma que você tinha comprado?!

— Tá debaixo do travesseiro que agora é dele.

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