— Você acha que ele não vai sair? Já foi todo mundo embora. Ele tá refestelado lá na sala.
— Quer que eu faça o quê?
— Olha lá.
— Será que ele bebeu demais?
— Parece que não quer ir embora. E amanhã você ainda tem carreata, né?
— Vou lá ver com ele. (Caminha até o homem sentado no sofá) Então, tudo bem? Todo mundo já foi. Você veio de carro? Ficou sem carona? Quer que a gente chame um Uber?
— Acho que ele tá falando alguma coisa.
— Mandou chamar um amigo ex-policial.
— Bizarro... Ele tossiu? Sai de perto! Você lembra se ele veio de máscara?
— Acho que a gente teria notado, não?
— Ô! Cadê sua máscara?
— Esquece. Não adianta.
— Pergunta se ele quer que a gente chame alguém da família, os filhos.
— Você quer que a gente chame seus filhos?
— Que foi que ele disse?
— Disse que é pra não meter a família no meio, senão ele mete...
— Já sei, pode parar.
— Disse que, se vacilar, ele convoca uma guerra civil, tem legiões de asnos armados que ainda acreditam nele aí fora.
— Ui! Ué? Ele tá chorando?
— Hmmm. Acho que é teatro.
— Não chega muito perto! Pergunta se ele precisa de ajuda pra levantar. Vai ver que é isso. Vai ver que não consegue ficar em pé sozinho.
— Disse que não precisa de ajuda de ninguém, que aqui quem manda é ele.
— Será que ele acha que já está em casa?
— Talvez.
— Que foi agora?
— Disse que não veio pra construir.
— Como é que é?
— Foi o que ele disse.
— Olha, ele tá falando de novo. Vê aí o que é.
— Nunca imaginou que chegaria até aqui.
— Falei pra você não convidar.
— Tá dizendo que não vai largar o osso.
— Louco.
— Eu sou a Constituição.
— Como é que é?
— Foi o que ele disse: Eu sou a Constituição.
— Doido. Quem é que ele pensa que é?
— Ele já disse, acha que é a Constituição.
— Como é que a gente vai se livrar desse traste agora? Você resolve, você convidou, vou dormir.
— Peraí, ele pegou o telefone. Tá ligando pra alguém.
— Que é que ele falou agora?
— Tá pedindo instruções.
— Sobre?
— Sobre os próximos passos.
— ?
— Tá dizendo que, enquanto mantiver os generais no cabresto, está tudo sob controle.
— Generais?
— Deve ser como ele chama os colegas.
— Você acha que ele é do tráfico?
— Difícil. Disse que tem contato com ex-policial.
— Será que ele acha que é o presidente?
— Acho que não. Disse que veio pra destruir.
— Não vai deixar ele vomitar no sofá. Já basta estar tossindo sem máscara.
— Perguntou o que é sofisma.
— O quê?
— Perguntou o que é sofisma.
— Eu entendi. Pra quem? Pra gente?!
— Não, pro cara no telefone. Parece que não entendeu, quer saber o que é sofisma.
— E aí?
— Acho que o cara está explicando. Ele está balançando a cabeça. Parece que agora entendeu, disse que vai continuar confundindo, dizendo uma coisa um dia, o contrário no dia seguinte, chamando as coisas pelo contrário do que elas são.
— Onde foi que você encontrou esse cara?! Só falta você me dizer agora que está decepcionado, que ele não era assim...
— Achei que podia servir. Vai que a gente precisasse de alguém pra resolver algum perrengue, sei lá, uma coisa que a gente sempre quis fazer mas não podia. Tipo aquela terra embargada lá no Norte, ou tirar os pontos da sua CNH, ou limpar o nome da empresa.
— Sim. E tem também a ação trabalhista que a Rosinha tá movendo contra a gente. Mal-agradecida.
— Ele é do tipo topa-tudo, pau-pra-toda-obra.
— Entendi, minha preocupação é a gente aqui. Você acha que ele é inofensivo?
— Olha só a cara dele pedindo instruções. Não consegue nem se levantar sozinho do sofá.
— Bom, então vou dormir.
— Pera, peraí.
— Que foi?
— O cara tá mandando ele atear fogo em tudo.
— Aqui?!
— Não entendi direito.
— Como é que você sabe? Você ouviu?
— Ele fica repetindo que ainda estão comendo na mão dele. Acho que o outro deve ter dito que agora é a hora. E ele respondeu que não vai deixar passar essa oportunidade.
— E agora? Que é que a gente faz?
— Sei lá.
— Será que ele acha que a gente é burro? Tá falando da gente!
— Não.
— De quem mais?
— A gente não é burro.
— Vai tentar alguma coisa aqui.
— Impossível, não tem condição. Olha o estado do sujeito.
— Então que chance é essa que ele não vai perder?
— Sei lá, mas não é com a gente.
— Cadê ele?
— Foi lá pro quarto!
— Vai lá atrás dele!
— Tá deitado na cama.
— Na nossa?
— E daí? Lamento, quer que eu faça o quê?
— Como é que é?!
— Foi o que ele disse.
— Ele tá debochando da gente? Essa frase é nossa!
— Mandou ir arrumando a mala.
— Que mala?
— Quer saber quanto tempo vai levar pra gente entender quem é que vai sair daqui de verdade.
— Cadê a arma que você tinha comprado?!
— Tá debaixo do travesseiro que agora é dele.
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