Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Como sustentar valores iluministas de sociedades que perpetuam o racismo?

Romance de Jeferson Tenório busca lugar de exceção para a literatura, como afirmação da contradição e da dúvida

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Há momentos na história das ideias quando o pensamento cede à força avassaladora dos consensos. São épocas de grandes transformações, nem sempre para melhor. Resultam da impotência das ideias diante das contradições. É mais ou menos onde estamos.

A contradição passa a ser insuportável. Trumpismo e bolsonarismo dependem de realidades paralelas, fraudulentas e conspiratórias. Os movimentos emancipatórios cancelam os desvios.

Como sustentar, por exemplo, valores iluministas engendrados por sociedades que perpetuam o racismo? E, entre esses valores, o de uma arte e de uma literatura que se recusam a ser reduzidas a expressão e representação da identidade do autor, por entender que a própria identidade é uma construção e uma armadilha?

“O Avesso da Pele” (Companhia das Letras), de Jeferson Tenório, trata indiretamente desse impasse. Como resistir à marca que lhe é imposta, sem desenvolver a forma reativa desse estigma? No romance, a raça paira como um fantasma destruidor sobre todas as relações. Tudo poderia ser natural, simples e objetivo, só que não.

Há uma passagem emblemática no livro, quando o pai pergunta ao filho pequeno qual a cor de sua pele. O menino não sabe o que responder. Não vê cor nenhuma, não vê raça. A pergunta do pai é educativa e implacável, quer preparar o filho para a vida. Para defender-se, ele terá de se ver pela ótica do branco, como negro.

A cena revela a perversidade e o círculo vicioso do racismo. Não há como se defender sem incorporar a lógica do inimigo, sem entender o estigma e convertê-lo em arma. Um negro que não enxerga a cor que lhe foi atribuída pelo branco é um alvo indefeso, mas enxergar-se negro já é admitir o viés racista.

O romance, narrado pelo filho que ali aprende que é negro, conta a história de uma tragédia que podia ser simples drama familiar se não fosse a presença da raça como destino, pairando inexorável sobre a vida dos personagens, contaminando suas expectativas e seus projetos.

“O Avesso da Pele” é um livro que nasce da experiência do autor, mas que ganha sentido numa reflexão potente sobre a ambiguidade trágica das identidades. Ao perguntar ao filho a cor de sua pele, o pai o prepara e o condena ao mesmo tempo, não tem escolha nem saída. É essa a grandiosidade contraditória do seu ato: dar a vida e a morte juntas e indistintas.

Faz sentido, como estratégia de guerra e sobrevivência, inverter o racismo, atribuindo raça também ao branco, para destituí-lo do lugar de paradigma, monopólio definidor das diferenças. O surrado “lugar de fala” emerge, revelador e eficaz, para confrontar o branco com a própria raça, com o estigma que ele costuma impor ao outro.

Ao transformar a raça em fantasma, entretanto, o romance de Jeferson Tenório busca outro lugar para a literatura, além das estratégias e das convenções correntes da representação. Procura reconquistar, na simplicidade paradoxal da linguagem universitária do narrador, um lugar de exceção da literatura, como afirmação das contradições e da dúvida. Nada a ver com apaziguamento, confirmação de consensos e certezas. Nada a ver com estratégia, redenção e empoderamento.

É difícil aceitar como absolutos os critérios subjetivos de uma sociedade racista, colonial e opressora. Atrelar a literatura à expressão da identidade do autor é uma forma de tentar minimizar o poder dessa subjetividade, reparando a injustiça da sua discriminação dissimulada com uma objetividade alternativa, equivalente a confrontar os brancos com a relatividade da própria raça.

A armadilha se configura quando essa objetividade tenta anular as contradições, a ambiguidade e o mal-estar que a representação literária e artística mantém com relação à ideia de identidade.

Um romance é e não é seu autor. A graça da literatura é incorporar o mundo que o atravessa, mas que também lhe escapa e o contradiz. A obra é em si mesma uma experiência subjetiva singular e complexa, diferente de uma asserção sobre a qual o autor teria controle absoluto.

Da mesma forma, a percepção crítica de uma obra não se reduz ao conhecimento que o crítico esbanja sobre o autor e seu universo, nem se mede pela adequação de seu ponto de vista a regras e modelos previamente aceitos para lidar com esse universo. Não faz sentido supor que compartilhar da experiência de um autor seja condição para entender e falar de sua obra. A menos que o horror à contradição tenha terminado por derrubar também a possibilidade de desvio e exceção no pensamento e na arte.

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